sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Outro caminho

A cada dia olho e reparo com mais cuidado  nossa cultura. Vejo a educação que as crianças recebem nas escolas,  o que passa nas televisões e mídias, o que está acontecendo na ruas ,no trânsito , pelas calçadas. Outro dia fui no shopping comprar uma calça e vi  lá também. E vejo as religiões várias. E nas relações afetivas, na forma de se alimentar, de nascer, crescer e ficar mais velho. Vejo no jeito que lidamos com  mundo das plantas, da água, dos bichos. Vejo, de maneira explícita, na divisão sexual da vida social.
A cada dia se torna mais nítido e com mais detalhes como nossa relações  estão saturadas de práticas e valores patriarcais.
                Agora, preciso declarar que eu tenho uma teima. Acho que tem outras coisas que também acontecem ali, na vida vivida, sua muitas expressões. Outras formas que não essas. Ás vezes estão totalmente invisíveis. As vezes estão sendo reprimidas porque estão ganhando corpo. Em outros momentos estão nascendo, feito um sementinha que acabou de brotar. Estão virando teoria, práticas coletivas, formas de subjetivação. Tem também muitas formas e intensidades.
                Sou psicólogo e costumo dizer que há uma dupla consciência que nos atravessa. De um lado, de maneira hegemônica – essa cultura dominadora, opressiva, exploradora. Mas de outro, sempre uma tentativa, uma alternativa, um querer outro caminho. Como diza José Carlos Mariátegui e uns índios conhecidos meus , temos duas almas que estão o tempo todo presentes.
                Tenho observado isso nas relações de gênero. A tal da guerra dos sexos , hiper fragmentação identitária, o povo se devorando e se cuspindo sem parar. O tal do ódio , esse afeto que agora anda tão em voga, muito presente. Ódio  explícito e  escancarado, mas também escamotado, com mil disfarces, confundido misturado no meio de outros afetos.
                Mas  daí que preciso de novo declarar minha teima. Acho que dá pra tentar um outro caminho que não seja exclusivamente da guerra, da violência , da divisão. Cada dia  olho e reparo na nossa cultura e minha teima anda ganhando mais tamanho e forma. Dá pra conhecer cada vez melhor como em cada lugar essa cultura do ódio se expressa e nos enreda.
                É possível criar outro caminho.  



quinta-feira, 21 de setembro de 2017

   Julieta Paredes ou mano, segue as mina

Esses dias cruzei com um vídeo no you tube de uma bruxa zica - assim me descreveram ela - a professora Rita Laura Segato. Ela mexe com questões de violência, gênero e colonialidade. A muié é bruxa zica memo. Nesse vídeo ela fala de dois projetos históricos que estão em disputa hoje. O primeiro é o da colonialidade, o projeto histórico das coisas. Projeto do acúmulo de coisas e da exploração do mundo. É o projeto que produz indivíduos. O outro é o projeto da vida, do vínculo, da festa e do prazer. Projeto histórico que produz comunidade.
Isso de sair caçando novos projetos alternativos ao capitalismo colonial já é assunto que me instiga faz tempo. Com amigas, aqui e acolá sempre trocamos novas impressões sobre isso, um novo matiz, um novo detalhe, outro nózinho que se abre. Nesse mundo horroroso,  onde a cada dia surge uma nova cabeça da hidra capitalista, é um treta complexa pensar no que seria um outro projeto societário para além do capital, ou, como diz o Anibal Quijano, um novo sentido histórico. Algo que reúna esse monte de opressões, de violências, de dominações e subverta essa parada toda.
Foi o próprio Quijano  que um dia  me falou de algo bem parecido com isso que a Rita Lauro defende. Me falou que, daqui pra frente, cada vez mais veremos o mundo dividido entre um grupo fundamentalista em todos os níveis  que se possa imaginar – e até  onde nem imaginamos – bárbaro, falocêntrico, assassino, desgracento de tudo. Miséria em todas as formas. Será a personificação de “última geração” daquilo que o Dussel chama do paradigma do“eu extermino” que move a dita civilização euro ocidental. Sempre que lembro desse papo, me vem na cabeça um desses líderes religiosos fundamentalistas que ficam babando ódio na televisão e arrastam multidões.
E na outra banda, segundo o Quijano, se fortalecera cada vez mais o que a gente pode imaginar de mais diverso e miraculoso. Dos inúmeros pontos de vista. Visível e invisível. Do imaginário, do trabalho  como libertação, do gênero como exercício dos afetos deslumbrantes, do prazer para além do consumo. Do corpo, da terra, da imanência, das substâncias das delícias das gosmas das formas todas e muitas. Dos mil pensamentos articulados e invertebrados. Dos cósmicos inimagináveis. Do concreto.
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Bom, tudo isso pra dizer que na semana que vem chega em São Paulo a Julieta Paredes, líder do feminismo comunitário boliviano. Comunitário, latino-americano, popular e intergaláctico
Intergaláctico.
A proposta do feminismo comunitário é uma articulação entre vários pontos e propostas críticas. Feminismo crítico, pensamento social crítico, descolonização critica. Uma proposta de  práxis e viver comunitário que leve em consideração a memória ancestral das mulheres indígenas do continente. E de outras mulheres. Seu tempo, seu corpo, sua vida. E mais um monte de outras coisas, entre elas, o viver em comunidade com todos os seres, não só entre humanos. O trem é intergaláctico como disse.
Intergaláctico.
Não quero ficar aqui tentando falar do feminismo comunitário. Não tenho condições pra isso. Mas só queria escrever esse pouquinho aqui pra poder dizer que nessas inquietações de tentar achar um caminho crítico menos zuado pelo eurocentrismo tenho encontrado um monte de práticas, idéias e conhecimentos firmeza total. E que aos poucos vão amarrando  o que seria esse projeto histórico do vinculo, da vida e do prazer comunitário para além do capital.  E nisso, o feminismo comunitário é algo que me deixou muito muito impressionado. Água fresca em tempos muito áridos, água de estrelas. É lindo, potente, guerreira. Saravá  Julieta Paredes. Quem puder colar pra conhecer. Axé total.
Mano, segue as mina.
Salve as bruxa zica, os bicho, a terra, as lua, as criança as força.
Salve as planta.  

quarta-feira, 30 de agosto de 2017



 

 
Utopia deliciosa

Esses dias lendo um texto ai pra um curso que tô dando me deparei com um tema desses que eu sempre penso “preciso conhecer melhor isso” e acabo sempre deixando pra lá.  Houve um período na Europa onde rolou um periodo sinistro de perseguição às mulheres e que é muito desconhecido, invizibilizado mesmo. Ficou conhecido como Caça às Bruxas. Segundo esse texto, entre os séc. XV e XVII foram assassinadas cerca de oito milhões de mulheres acusadas de bruxaria. A grande maioria eram mulheres  de origem rural. Um horror absoluto e que é muito desconhecido de todo mundo. 
Mas o que me mais chamou atenção nesse texto foi a idéia de que o principal objetivo da Caça às Bruxas era exterminar um universo de conhecimento muito presente na Europa naquele momento e que se confrontava diretamente como a instituição da Igreja.  Conjunto de conhecimentos éticos, técnicos filosóficos que precisavam ser exterminados para que a Igreja sedimentasse seu poder por todo o território europeu. Daí eles serem demonizados como bruxarias , coisa dos diabo e essas besteirada toda.  
Então, sabe esse universo  de duendes, fadas, unicórnios, princesas, coisas desses filmes ai que tão cheio de bruxas, elfos, druidas e tal? Arvores velhas que falam, mil serezinhos pra todos cantos, fadas monstros e atmosfera mágica como ordem normal da vida?  Então, esses são exemplos do mundo lendário e mítico baseado na vida de múltiplo povos  que habitavam a Europa. E o mais interessante é que as mulheres cumpriam um papel central nesse universo todo, já que o culto à fertilidade e à natureza – seus ciclos - eram os pilares dessas sociedades e eram as mulheres aquelas responsáveis porisso. As mulheres e o feminino carregavam enorme prestígio no universo “pagão” da Antiga Europa.
 Agora vamo lá, sendo muito simplista (eu sei), maniqueísta (eu sei) e muitíssimo genérico (to ligado). Era mais ou menos isso que tava rolando na época da Caça às bruxas: De um lado tínhamos uma sociedade dominante e em expansão querendo dominar e detonar as outras que estavam por ali. Uma sociedade em expansão cujo seus principais valores estavam baseados em uma cosmologia que tinha um Deus único – no céu mandando em tudo e todos para além das coisas -, patriarcal e onde os homens gozavam de todos privilégios, máximos privilégios. Do outro uma sociedade orientada pelo culto à fertilidade e à terra, plena de deuses, semi-deusas e seres de todas as naturezas. Nesse, as mina tinha um papel central nas decisões políticas, na religião e na vida cotidiana.  Não eram subjugadas, pelo contrário, ocupavam os lugares de decisão sobre a vida de todos. E, muito importante, nessa sociedade não tinha escrita. Quem mantinha os segredos e saberes eram as sacerdotisas, as mulheres, detentoras do conhecimento sobre  a vida.
O Anibal Quijano, um sociólogo peruano me disse uma vez que a sociedade do séc XXI vai ficar cada dia mais dividida entre os ultra-conservadores facistas fanáticos horrorosos abjetos (sempre lembro do Malafaia nessas horas) e algo parecido com um desses meme que rola por ai chamado o Jardim das Delicias, um mundo altamente heterogêneo em todas suas possibilidades, onde  prazer, magia, natureza viva serão as forças principais.
Apesar de vozes e forças  muitas em mim ficarem me levando para o contrário - sim  tenho meu Malafaia interior, é triste, mas é verdade - , eu tô afim do mundo Jardim das Delícias.  Lembrei das frutas  agora, muitas frutas de todo tamanho e texturas. E de insetos, cada um mais diferente que o outro. Da mata, dos efeitos visionários, e dos desenho das crianças. Eu quero o mundo dos desenhos das crianças. Eis um bom imperativo categórico – babalativo cacaorético seria mais adequado né -  para uma utopia deliciosa. E ouvir as plantas, quero um mundo que a gente ouça as plantas.
Fruta, criança fertilidade, feminino, planta, prazer, 
Mundo quase oposto do que estamos vendo tomar o poder. Não por acaso são quase todos homens e patriarcas que hoje estão ai.

Já escolhi. Eu quero o mundo da utopia deliciosa. Desse babalativo cacaorético eu não abro mão.

PS: Jardim das Dlícias seculo XXI - http://image.slidesharecdn.com/hieronymusbosch-090529075910-phpapp01/95/hieronymus-bosch-9-728.jpg?cb=1243601986

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Dança
Nisso de ir atrás de entender os nossos machismos e como isso nos habita, aqui acolá tropeço em alguma coisa que tem a ver com o zen. Acho o zen foda demais. E também o taoísmo. Que coisa mais sublime que são essas filosofias. Até difícil encontrar palavra. Num tem né, a caça da palavra se desfaz num círculo. E até o circulo uma hora termina. Não tem  palavra que dá conta. Foda demais. Mas daí acho que elas dizem um tanto de coisa boa pra isso de pensar como funciona o machismo em nós.
Em muitas práticas orientais, o mundo é visto como interação entre polos de energia, o mundo se desenha com esses pólos se seguindo, se orientando, co-existindo. Essa é uma visão muito iniciante de quem conhece pouco. Coisa de ocidental que te mania de ler. Mas, feito esse desconto, me atrevo. Olha só essa história.
...
Musachi foi um grande samurai e guerreiro de espada que viveu no Japão do séc XVI. Musachi era extremente agressivo e atormentado. Desde menino ele se perguntava muito sobre o fato de ser samurai. Muitas vezes não via sentido naquilo, nos duelos, na espada. Havia saído de casa muito cedo, após um desentendimento com seu pai. Ao que li caçando aí pelas net da vida, o pai do Musachi- também um grade samurai – foi violento com ele.
Nesse dia Musachi saiu de casa. E encontrou um mestre.
Esse mestre de Musachi servia de conselheiro e acalmador. Musachi não entendia seu destino de lutador de espada, se perguntava o porque não ser outra coisas. Tinha muita angústia. E muita agressividade descontrolada. Nessas horas, o mestre costumava acalmá-lo até o momento do combate. Sempre venceu. Mas sempre, depois de um tempo, Musachi voltava ao seu lugar de tormenta.
  Uma hora dessas, bem quando Musachi ia enfrentar o maior dos samurais  da época, o mestre cessou os conselhos. Não havia mais o que dizer a Musachi. Só que dessa vez o cara tava cachorro loco total, babando ódio, totalmente fora da casinha, querendo matar Deus e o mundo, muito transtornado. Nunca tinha ficado tão angustiado, tão se perguntando qual o sentido daquilo tudo e tão dentro de um treta daquela tamanho. Parece que o opositor era um samurai pesado mesmo. Musachi tava muito fora mesmo. Dando o loco memo. A coisa tinha chegado no limite.
Daí o mestre pegou um varinha dessas de galho e riscou um circulo no chão e deu duas espadas para Musachi. Coisas do zen.  O circulo e duas espads. Um enigma, um poema, um desafio. Diz que Musachi gritou, chorou,  reclamou, riu, desistiu, se moveu, descansou, gritou, gritou se exauriu.
Estava com as duas espadas.
Musachi se moveu. Em algum momento, entendeu. Musachi saiu do círculo.
Nesse momento, Musachi havia criado o estilo de luta usando duas espadas. Mudou a arte da espada de toda história do Japão.
Musachi fez um gesto de reverência ao mestre.  E venceu o desafio contra o grande samurai. Foi sua última luta.
Quem viu Musachi se movendo afirma: era a própria dança do universo.
Musachi se tornou mestre de outros guerreiros de espada. E mestre de pintura.
Havia também muita destreza na caligrafia de Musachi. Ao escrever, era também a dança do universo. Dança expressa entre o preto e o branco.
...
Quem me contou essa história foi um amigo que criou um exercício corporal baseado nessa história. O nome do exercício é uma mão faz outra acompanha
Acho que não tenho a capacidade de escrever essa história. Mas sei que quando ouvi lembrei muito do tema do machismo. Talvez precise escrever ela muitas vezes para passar o que acho que entendi. Com isso de machismo é assim né. Você vai e volta e vai. E muitas vezes volta para o mesmo lugar. Tipo um círculo memo.
Daí que talvez o mais importante seja dançar. As mãos, as cores, as espadas. Uma dança onde uma polaridade vai. E a outra acompanha. E depois há uma volta.
Outro amigo meu me disse esses dias que o patriarcado é como uma espada apontada o tempo todo sobre nossas cabeças.

Talvez o mais importante seja dançar. Tipo um círculo memo.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Ternura radical

Um dos temas que mais gosto de ganhar tempo matutando até o sem fim é a América Latina. Pensamento, arte, afeto, terra, poesia, lirismo, movimento, suas mil formas de resistência, enfim os muitos concavos e convexos (e tudos ai no meio disso) de Nuestra América. E dessas matutações uma das coisas que tenho percebido cada dia mais é como aconvivência de extremos em um mesmo espaço, corpo, símbolo é  um aspecto que atravessa nossa história. Povos extremamente diferentes, línguas, costumes, geografias e humanidades muito distintas. Tudo isso forjado por uma extrema violência colonial. E por mil formas de resistência e alternativas a essas dominações todas. Asi és. Experiências muito distintas e radicais convivendo, se penetrando, sendo o mesmo. É nóis na Pachamama.
Daí um outro tema que atravessa essa  minha pensação é o patriarcado próprio daqui né. Entronque patriarcal como chama a amiga boliviana Julieta Paredes , ativista do feminismo  comunitário. Heteropatriarcado como vi Angela Davis dizer outro dia. Um patriarcado de múltiplas origens (africano, indígena, euroocidental, árabe) que nojentamente se articula por aqui em lógicas e ações específicas.
Tudo isso pra dizer que vi um vídeo outro dia que me impressionou muito. Chama-se ternura radical contra el sistema patriarcal. Quem postou foi uma feminista Argentina, Dani, que tava oferecendo uma oficina com esse nome. Segundo ela explica no vídeo, desenvolveu essa idéia de ternura radical a partir da necessidade de criar formas de trabalhar a violência radical do patriarcado no continente.
Segundo ela, é preciso pensar espaços distintos para distintos objetivos. A luta política no espaço público, o ato de tomar as ruas e de participar de espaços deliberativos pede contorno e práticas diferentes dos espaços onde vai se cuidar do estilhaçamento subjetivo, corporal e afetivo do patriarcado na vida das pessoas. Há níveis da experiência que precisam de formas de cuidado específicas. Experiências que necessitam de uma ternura radical. Muito lindo.
Outra coisa muchísimo interessante (com aciento argentino) que ela afirma é como o ideário fala-escuta - que nós psicólogos prezamos tanto (estamos presos?)-  é insuficiente pra trabalhar essas vivências, para cuidar da “caixa de pandora “ que se abre quando se toca em determinadas experiências. Nesse sentido, aponta Dani, é preciso trabalhar a dimensão do corpo e da política pela arte, pelo teatro e formas que transcendam o “nomear” da violência vivida. Dai a proposta do cuidado entre corpos e da ternura radical como caminho. Tô impressionado pela simplicidade e força dela falando. Direto ao ponto, com força e  leveza. Lindo, potente.
No que pude ver,  a maioria das pessoas da oficina são mulheres. Mas vi ali uns três homens. Um deles estava inclusive no centro, fazendo uma das vivências. Gritava muito. Impactante. Só de ver já imaginei e só de imaginar já fiquei meio assim. É visivelmente intenso. Os varones antipatriarcales de Córdoba que conheci tem um pouco essa pegada também;
Para tocar nas questões mais delicadas do patriarcado heterogêneo en Nuestra America, é preciso não perder a ternura. Mas, se ela anda meio perdida, ou adormecemos ela em algum canto, é preciso trazê-la de volta. Pelo corpo, pela política, pelas viagens aos recônditos escondidos e também pela palavra. A palavra é mais um dos elementos. Hay otros e a Dani explica isso muito bem também. O videozinho é porreta viu.  Muchísimo potente.
Isso em quatro minutos no you tube. Imagina fazendo. Que baguio loco. Fiquei na sede aqui. É nóis na Pachamama, suas força,  suas raízes, sua ternura. Sua radical  ternura.


segunda-feira, 7 de agosto de 2017



O tempo e o cão

Esses dias estava ouvindo uma monja budista contar uma estória sobre um cachorro que ela teve. Essa monja gosta muito de cachorro, sempre tem uns cachorro com ela.
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Daí ela contou que uma vez arrumou um cachorro muito muito raivoso, que só latia e atacava todo mundo sem parar. Diante disso ela deixou uma sala da casa só pra ele ficar lá vociferando e babando até cansar. Só que ele recomeçava assim que tinha o mínimo de energia. Segundo ela, ele era assim desde pequenininho. Também passeavam com ele, mas era muito difícil.
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Em um dos meus escritos aí pra trás falo do doberman interior. Sempre me remeto a essa imagem porque sinto ela muito forte nesse lance do machismo. O cachorro da porta dos infernos algúem me falou uma vez. E o cachorro preto de um filme do Kubrick de terror, algo que remetia a isso de inferno também se não me engano. Lembro também do medo que eu sentia quando era menino de passar numa rua perto de casa, a “rua dos cachorros”. E as histórias de crianças que foram pegas por cachorros quando entraram em algum sítio ou chácara. Muitas lembranças que remetem a isso né, as imagens não cessam. Se eu deixar elas ficam vindo na mente e correndo que nem filminho até sei lá quando.
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Sinto a voz patriarcal como esse cachorro louco. Por um lado tem ele, um ímpeto de agressividade tresloucada, esse ódio babento. De outro, a imagem de uma criança assustada, incapaz de fazer outra coisa além de ficar apavorada. Acho que essa díade é muito presente no modelo patriarcal de ser homem. Está muito presente em nós. O cachorro odioso e o menino assustado.
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Então lembro de novo da história da monja. Diz ela que ia todo dia lá e buscava ficar o mais próximo que podia desse cachorro. Contou inclusive da energia que ficava na sala, como era algo que mesmo de olhos fechados qualquer um era capaz de sentir a agitação daquele espaço, tão tomado de raiva que ele tava. Passou um bom tempo indo lá com seus discípulos diariamente para observar a agressividade e ir se aproximando aos poucos. Íamos lá dançar com ele e com a sala, acho que disse em algum momento. Até que um dia o cachorro ficou quieto. Depois de muito tempo o cachorro ficou quieto. Não sei se manso, mas quieto. Nesse dia, conta a monja, ela juntou as mãos e agradeceu, se sentou de frente a uma parede da sala e praticou zazen.
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Daí acabou.
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Essas estória da monja viu. essas estórias do zen. Pra variar, não sei se entendi alguma coisa, mas sei que me lembrou muito essa parada do patriarcado.
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Ela não fala o tempo que levou todo esse negócio ai. Mas tenho pra mim que a coisa demorou uns bons anos viu. Parece que o tal do cachorro era mesmo muito bravo.
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Obs: não sou praticante nem contrário a nenhuma religião que fala de inferno. E não tenho nada contra cachorro. Cresci num mundo cheio dessas imagens católicas, numa cultura assim. E cresci numa vila cheia de cachorro de tudo que e jeito. São imagens guardadas ai nas minhas memórias de paulistano brasileiro, só isso.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Rolimã
Ontem estava andando no meio da tarde por uma rua  meio movimentada quando um cara desses carro chique esportivo passou numa velocidade  altíssima que deixou todo mundo ali assustado e dizendo com os olhos que cara babaca.
Não vi o motorista. Mas acho, tendo quase certeza, que era “o” motorista. Essa cena tem se repetido direto nesses tempos aqui em São Paulo. Infelizmente, é meio óbvio que isso aconteça. O povo que gosta de fazer essas babaquice está se sentindo mais habilitado pra isso. Afinal estamos numa cidade que o prefeito vive fazendo piruetas ridículas (e letais) por aí, elogiando a velocidade, o carro potente e a aceleração. Outro dia inaugurou a praça Airton Senna. Que coisa tosca.  
Dai que lembrei que ações que a figura abjeta do atual prefeito encampa são didáticas pra entender o que é a cultura machista. Quando eu era menino, no bairro e na escola que eu estudei (e sei que sou um exemplo mais que comum) a cultura da velocidade era algo totalmente impregnado. O menino mais rico da escola (ridiculo né, mas tinha isso) já tinha um carro com 16 anos e adorava passar correndo pra lá e pra cá pela ruas ali. No bairro igualzinho, lembro das motos passando correndo, lembro que antes das motos eram as mobiletes e lembro até mesmo de me sentir poderoso no meu carrinho de rolimã. E lembro que fiquei sabendo de um grande feito de um menino do bairro do lado: era tão bom nisso de carro que teria sido aceito para dirigir os carros da Rota, aqueles camburão do grupo mais assassino da polícia de São Paulo. E na faculdade eu chamava um dos meus grandes amigos de Senninha vrum vrum. O cara adorava competir com seu carro com as outras pessoas no trânsito, ficava todo ouriçado com essa competição cotidiana nas ruas. Ficava lá fazendo vrum vrum pra todo mundo.
 O patriarcado é um sistema de relação que está no nosso dia a dia ensinando valores e condutas pra todo mundo. O carro, a máquina da velocidade desde criança, a habilidade para ser polícia, o cotidiano do vrum vrum. É assim: os meninos que se destacam nessa lógica vão sendo tratado como vencedores e passam a ser admirados e vistos como exemplo a ser seguido. E assim vai se criando uma hierarquia do ser “mais” ou “menos” homem. E quanto mais pra cima nessa hierarquia mais vc olha os que estão embaixo como inferiores. Se precisar, humilha, machuca, zoa eles pra ensinar e estabelece como as coisas devem funcionar. Triste né, muito triste.
O patriarcado tá longe de só estabelecer seus domínios nesses exemplos evidentes. O culto ao carro é de uma obviedade escancarada né. Mas olha, quer ver uma sutileza dessa parada da velocidade, a Maria Rita Kehl tem um livro chamado O tempo e o cão onde essa história vai ganhando desdobramentos bem diferentes dessa obviedade grotesca do nosso prefeito Walter Mercado, o terror plastificado. Vou dar uma olhada pra relembrar e escrevo logo mais. E também sobre o mito do herói... É assunto que não acaba . Mas vamo devagar né, sem pressa. Pra lembra de uma coisa que já disseram bonita disso. “a lua anda devagar mas atravessa o mundo em uma noite”. Acho que é um provérbio de Angola parece.  Vontade de ir la na praça Airton Senna e pichar isso.
O Dória é muito tosco.


quarta-feira, 26 de julho de 2017

La sanación
Das muitas relações e formas de expressão do patriarcado, uma bastante conhecida é o privilégio da mente sobre o corporalidade, do pensamento abstrato sobre a matéria viva, do cérebro sobre  o corpo todo e por aí vai.
Ontem encontrei uma notícia sobre a red de sanadoras ancestrales indígenas da Guatemala, grupo de mulheres que tem um trabalho muito firmeza. Uma das sanadoras explicava que começaram a se organizar como rede depois que um grupo de mulheres indígenas foi até uma montanha que estava ocupada pelo exército. Foram para cuidar de outras mulheres que estavam lá, impossibilitadas de sair. Ao se encontrarem e realizarem práticas de cuidado e cura com base em suas cosmovisões e naquilo que ensinaram suas avós. Desse encontro surge  um grupo. A notícia correu e outro grupo quis se juntar  e outro e outro. Formaram a rede. São mulheres que, a partir dos conhecimentos de seus povos, realizam um trabalho de sanación no corpo- território das mulheres e de la Madre Tierra, um dos nomes que dão à Terrra.
Corpo-território é um termo que elas usam. E relacionam a violência patriarcal-machista-racista sobre seus corpos com a violência contra a natureza, violência contra o corpo da Terra. Reestabelecem contatos com “la Madre Tierra” para se sanar, sanar a natureza e sanar politicamente a vida comum tão atingida pelo racismo e pelo patriarcado.
Bom, isso tudo pra dizer que acho que muito mais gente pode aprender e se beneficiar das práticas e concepções dessas mulheres indígenas. Que o que elas estão fazendo e expressando indica pistas valiosíssimas de possíveis caminhos para lidar com esse labirinto de horrores de nosssa civilização que cada dia parece mais cheio de becos.  E dentro desse “muita gente”, os homens poderiam prestar bem atenção nisso. Acho que nós também precisamos reestabelecer um vinculo com o próprio corpo, com o corpo-natureza, corpo Mãe-Terra. Com os ritmos, os volumes, os fluxos. Estabelecer vínculos afetivos, políticos, corporais que desmontem, aos poucos, os processos endurecidos do patriarcado nas nossas vidas.  
A rede de sanadoras ancestrais da Guatemala também se autodenominam como praticantes do feminismo comunitário.
Salve as planta.
Entrevista com la red de sanadoras de indígenas.

 https://www.youtube.com/watch?v=TZlsGfoe328


terça-feira, 25 de julho de 2017



Seu Miaggi
Andei dando uma relida nos meus textos pra lembrar as coisas que andei escrevendo sobre esse tema do patriarcado. E uma das imagens que aqui acolá aparece é a presença de uma voz dentro da cabeça que vai orientando a gente a seguir o ditames da cultura machista.
Tem texto que chamo ela de doberman raivoso, tem texto que falo que é só um silêncio analfabeto, ou um grilo falante que fica na “cacunda dos afetos” (essa foi boa né), tagarelando o tempo todo as ordens que vem direto da central. Mas o que reparei e que falo muito pouco ou quase nada é do que pode ser uma voz alternativa a isso. Ou seja, uma voz que consiga nos guiar por outro caminho.
                Confesso que em mim essa voz não é ouvida com facilidade. Muitas vezes ela é só a mudez analfabeta. Outras, é uma voz fininha e distante, voz amedrontada diante de um doberman raivoso. Em alguns momentos consegue ser uma voz mais presente, com alguma possibilidade de ser ouvida e até entendida. E, muito raro (em algum papo desses por aí chamei essas horas de momento samurai), a voz consegue ser suficientemente focada e certeira a ponto do doberman e o grilo se verem em maus lençóis. Mas esse momento ainda é raro. E, sinceramente, não tenho muita segurança que vá deixar de ser assim durante um bom tempo.
O que acho que dá é pra prestar atenção e ir pegando uma manha de sacar essa voz operando. Porque me sinto tão colado nela que frequentemente saio simplesmente fazendo o que ela manda sem nem me tocar. Simplesmente repito.  O que eu acho é que, se der pra pegar essa manha de reconhecê-la, dá pra abrir outras possibilidades diferentes de obedecê-la automaticamente e nem se tocar  disso. Talvez até quem sabe (já dentro do espectro samurai karate Kid de ser)perceber que ela é só uma voz entre outras. Mais uma voz. Mas isso não é fácil de fazer não. Na verdade é bem difícil. Eu acho.

ps: esse papo de voz me lembrou um escrito do Mario Quintana sobre o Mr Wong. Muito bom. È o tal samurai que falei ai no texto provavelmente. http://dharmalog.com/2002/12/02/o-estranho-caso-de-mr-wong-by-quintana/

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Até com as formiguinhas

Patriarcado é muito diferente de machismo e de violência sexista. O machismo é uma expressão – talvez a mais evidente e estúpida – do patriarcado.
Tem uns quinze dias ai que essa diferença veio bater na minha porta . Já tinha encontrado com elas em livros e papos por aí mas essa semana bateu à porta da vida inteira. Também não foi a primeira vez que ela aparece assim, mas enfim. Vou registrar  dessa vez , às vezes ajuda a sentir melhor.
O patriarcado é um padrão de poder que se estabelece nas relações mais variadas: com as crianças, com os objetos, com o espaço, com a política, com a comida, com o corpo, com as formiguinhas, com homens mulheres e com a vida em todos seus pedacinhos. Até com o cabo da salsinha que eu não vou usar pra cozinhar inclusive (aconteceu essa semana).
Aprendi a ser como sou e me relacionar com o mundo em todas suas dimensões. Aquilo que me faz machista está presente na minha relação com a hora deu acordar e coçar os olhos e  levar o travesseiro s de um ligar pro outro (também aconteceu esses dias) Uma das expressões dessa cultura  que eu fui imerso e aprendi a reproduzir (e reiventá-la, desenvolvê-la) é o que se entende comumente por machismo. É talvez a expressão mais  estúpida, é evidente e violenta, muitas vezes letalmente violenta. Uma coisa abominável. Mas é uma das expressões. Não é a única. O patriarcado é muito mais amplo.
Até dá pra chamar toda essa cultura de infinitas dimensões e expressões de cultura machista né. Acho até um bom nome de repente. Chamar o patriarcado de cultura machista. Ás  vezes pode ser uma boa. Só que é isso, tem que lembrar que é um machismo que se extende pra todos os seres, entes, galáxias. Nesse sentido  sou machista  com os travesseiros,  com as salsinhas e com as formigas. Até com as estrelas.

Que fase...

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Xixi junto

Esses dias trombei meu irmão e comentei com ele que tava pensando em voltar a fazer os textos do blog mas que tava meio difícil, que  gostava mas tinha parado, era algo bom de fazer mas que sei lá porque tinha parado de fazer ...  essas coisas. Daí ele falou :” é cara , é que cada texto daquele seu era uma coisa(faz um silêncio e um sinal com a mão indo pra baixo) . É difícil mesmo”
Esse lance de ficar pensando no patriarcado merece um volume especial só pra relação entre irmãos. Irmão mais velho, irmão caçula, irmão que se ama, que se protege, que se odeia, que compete.  Que isso e aquilo com mãe, pai ,irmã, vizinha, papagaio, rolimã, zapzap. Relação de irmãos. Coisa enfrunhada pelo patriarcado desde a raiz.

Olha, sei que meu irmão é um dos homens que mais conviveu comigo em tempo e densidade. Tem uma foto nossa perto de uma arvore de natal que eu tenho meio metro em pé e ele nem em pé ficava ainda. E agora nossas barbas já começam a ficar até com uma partes mais brancas. E patriarcado à parte com suas mixarias, tamos aí. É nóis na fita. E ele me falou e fez esse sinal com a mão.  Daí que acho bom voltar com esses textos. Quem lê gosta, eu que escrevo gosto também.  E vamos ver o que passa com isso dessa densidade que meu irmão comentou. Vamo mais de boa. Talvez assim a coisa saia de novo. Mais de boa na lagoa. Tipo dois irmãos fazendo xixi junto junto antes de ir dormir e segurando o riso até quase não aguentar. Porque o mundo entre homens também tem suas singelezas. E, algumas delas, duram até a barba ficar branca.