sábado, 23 de abril de 2016

Desengonçado

E me parece que uma dessas estruturas fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio isso, principalmente para quem já tem um caminho andado  nessas treta de gênero, mas para mim, e arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito invizibilizada.. E porisso se torna muito difícil de sacar e de sentir

Ando por esses tempos, conversando com alguns amigos e colegas homens sobre esse lance de masculinidade. Sobre o que é ser homem, ser formado para ser homem desde menininho, desde bem piquititinho mesmo. De antes de nascer na verdade né... E tenho começado a perceber e ouvir a variedade de experiências que nós temos sobre isso. De como os homens vivem, cada um de seu modo, o processo de se tornar homem.  E de como todo o tempo  estamos sendo  ensinados a cumprir determinado script de ser homem e  como isso vai ganhando traços muitos distintos e heterogêneos de acordo com a vida de cada um, onde nasceu e cresceu, para onde caminhou a vida, sua posição de classe, sua configuração familiar,  racial, sua religião.
E uma coisa que tenho notado é que nessa história existem duas dimensões que caminham juntas. Por um lado, é impressionante a alta diversidade de experiências. Dependendo desse monte de variáveis que falei ai – e muitas outras – o “ser homem” vai se constituindo de maneiras muito distintas entre si. Tem uma porrada de jeito de ser homem e de  ser machista, de conviver e ser formado pelo patriarcado.  Só que por outro lado, apesar dessa extrema diversidade, parecem que tem alguns processos, algumas estruturas dinâmicas que estão sempre presentes, apesar das diferentes formas e colorações que possam tomar. E que talvez  sacar como essas artimanhas estruturais do patriarcado operam seja uma pista de possíveis caminhos alternativos à essa masculinidade que nos é imposta.
E me parece que uma dessas estruturas fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio isso, principalmente para quem já tem um caminho andado  nessas treta de gênero, mas para mim, e arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito invizibilizada. E porisso se torna muito difícil de sacar e de sentir. Difícil de nomear, de criar uma narrativa sobre e mais ainda de pensar coletivamente sobre isso. E, portanto, é muito difícil de ter referências que ajudem a compreender isso que nos afeta e está tão presente na formação do “ser homem”.
*
 Tem um filme, que eu assisti há um tempão atrás, tava no colégio ainda. É um filme do Kubrick chamado Nascido para matar (Full Metal Jacket, 1987 )e em uma das histórias contadas – são duas – ele explicita de maneira muito didática e crua como a lógica da violência patriarcal opera entre os homens.  É um filme militar que se passa em um  lugar de treinamento de soldados que vão para o Vietnã.
O filme conta a  história de um menino que está servindo ao exército dos EUA. Só que tem um problema: o menino é completamente inadaptado ao esquema militar. Ele está acima do peso, gosta de dormir até tarde e é atrapalhado com o próprio corpo, aquilo que se chama por aí de desengonçado. Não consegue fazer os exercícios, esconde chocolate debaixo do travesseiro, é dorminhoco, enfim,  faz tudo de um jeito considerado muito ruim para os padrões do exército. O resultado dessa inadequação é que sua vida no quartel é uma sequencia de episódios onde ele é sempre humilhado. Muito humilhado. O grande símbolo disso é o sargento do seu batalhão, seu “educador” por excelência.  Logo no começo do filme, o menino passa a ser chamado de “saco de merda” pelo sargento. Outro recurso utilizado por ele é sempre se referir à família do menino, principalmente às mulheres, ofendendo e fazendo referências que remetem à violência sexual contra elas. Fora os castigos físicos que se tornam a regra na vida do menino. E, claro, que essas práticas passam a ser repetidas por todos os soldados do batalhão que vão seguindo o grande sargento educador.  Boa parte do filme é a descrição  desse massacre cotidiano que esse moleque vai passando ininterruptamente.
Só que um dia as coisas começam a mudar. O menino  descobre uma atividade em que ele é muito bom, bem melhor do que os outros. Ele descobre que é um exímio atirador. Ele saber armar, atirar e desmontar uma metralhadora como ninguém mais lá. E, por causa disso, passa a ser respeitado. E  se sentindo importante e reconhecido, ele se aperfeiçoa cada vez mais. Se dedica a aprender a atirar. A montar sua metralhadora. A reconhecer as balas e tudo que tem a ver com esse mundo. O filme tem cenas forte que mostram  ele se dedicando quase obssesivamente ao aprendizado da arma. Fica bem claro como ele descobre o caminho para deixar de ser um saco de merda e se joga de cabeça nisso até  virar um atirador de elite . De saco de merda a atirador de elite do exército dos EUA. Duas imagens radicais, extremas e muito didáticas. O sargento conseguiu seu objetivo. Só que não.
No fim do filme, Kubrick se dedica a demonstrar as sequelas que esse processo de intensa violência trouxe. Como o menino foi totalmente arrebentado nesse processo. Seu corpo muda, seus afetos se transformam, seu olhar se torna outro olhar. Ele se torna uma máquina de matar. E o filme termina quando ele mata o sargento e se mata. Até antes de receber o tiro final, mesmo ameaçado por uma metralhadora, o sargento continua se referindo a ele como saco de merda. Até ser morto. E então ele se mata. A cena toda se passa em um banheiro.   
*
                Faz um tempo já que tô querendo escrever sobre esse filme no contexto  de pensar a masculinidade. Porque tenho a impressão que isso que aparece no filme de maneira radicalizada e explícita, acontece de forma menos nítida no cotidiano da vida dos homens em diferentes e inúmeras situações. Desde menininhos somos treinados pela violência a desejar muito estar no topo da pirâmide patriarcal e, ao mesmo tempo, nos mostram como ser inadaptado a isso é sinônimo de ser o pior dos seres. Como isso nos faz sermos feios, defeituosos, burros e tudo mais  que é considerado ruim. Te convencer que você é o pior dos seres – e saco de merda é uma ótima imagem – e te fazer querer escapar disso  se tornando o vencedor entre os vencedores - um atirador de elite - é uma metáfora muito bem feita de como opera a educação da violência para ser homem no patriarcado.
                Só que  nós homens, apesar de sermos moldados por essa lógica  desde muito cedo e irmos cedendo cada vez mais a ela até chegar na nossa idade adulta, não somos só isso. Apesar de sermos muito isso, porque essa parada é realmente muito eficaz, não somos só isso. E isso fica claro quando olhamos para as crianças. A capacidade que a criança tem de escapar desses lugares que a querem colocar é uma boa mostra de como dá pra ser uma outra coisa, que sabemos e podemos ser outra coisa. A treta é que vão insidiosamente nos enfiando guela abaixo  essa série de valores, modos de ser e de sentir – acho que é modo de  não sentir na verdade, de embotar o próprio sentir- que vamos nos transformando nesses seres altamente brutalizados e distantes de si mesmos. Pela educação patriarcal – sua violência-  vamos emudecendo nossas  vozes e sensibilidades que caminham para outros rumos. Caminho triste, o machismo vai tomando conta de todo canto nosso e nos coloca pra gastar toda nossas energias em aprender e ser do jeito que um homem deve ser.
Mas acho que de tanto andar por aí prestando atenção nessas histórias, começo a perceber que nós resistimos a isso. Muitas vezes das formas mais impensadas e esdrúxulas. Muitas vezes com violência e ações aparentemente sem sentido. Poucas vezes com serenidade.  Quase nunca admitindo que temos um problema chamado machismo. E, infelizmente, quase sempre de maneira muito solitária. Mas tenho começado a reconhecer que, de uma forma ou outra, resistimos. Em alguns momentos, muitas vezes misturada com um monte de outras coisas, de forma confusa e sem contorno certo, conseguimos revelar que não nos esgotamos nessa lógica da violência.
Esses dias fiz um exercício corporal ai e,no meio das mil treta sem fim que apareceram, tinha tipo um pontinho, um lugarzinho lá no meio que era diferente. Era azul, verde e tinha um tanto de passarinho. E a sensação que eu fiquei é que ali era um desses lugares distintos da borrasca machista. Reconhecer e entender a lógica do machismo na nossa vida ajuda a reconhecer e começar a entender lugares alternativos a  isso.               Como numa espécie de dupla consciência de nós mesmos e de quem nós somos. Quanto mais conhecemos uma, mais conhecemos a outra.
Era um lugarzinho pequeno e meio confuso ainda, sem forma certa. Meio desengonçado. Mas tinha um tanto de passarinho.
 Achei um bom começo.