Desengonçado
E me parece que uma dessas estruturas fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio
isso, principalmente para quem já tem um caminho andado nessas treta de gênero, mas para mim, e
arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é
como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho
percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito
invizibilizada. . E porisso se torna muito difícil de sacar
e de sentir
Ando por esses tempos, conversando
com alguns amigos e colegas homens sobre esse lance de masculinidade. Sobre o
que é ser homem, ser formado para ser homem desde menininho, desde bem piquititinho
mesmo. De antes de nascer na verdade né... E tenho começado a perceber e ouvir
a variedade de experiências que nós temos sobre isso. De como os homens vivem,
cada um de seu modo, o processo de se tornar homem. E de como todo o tempo estamos sendo
ensinados a cumprir determinado script de ser homem e como isso vai ganhando traços muitos distintos
e heterogêneos de acordo com a vida de cada um, onde nasceu e cresceu, para
onde caminhou a vida, sua posição de classe, sua configuração familiar, racial, sua religião.
E uma coisa que tenho notado é que nessa
história existem duas dimensões que caminham juntas. Por um lado, é
impressionante a alta diversidade de experiências. Dependendo desse monte de
variáveis que falei ai – e muitas outras – o “ser homem” vai se constituindo de
maneiras muito distintas entre si. Tem uma porrada de jeito de ser homem e de ser machista, de conviver e ser formado pelo
patriarcado. Só que por outro lado,
apesar dessa extrema diversidade, parecem que tem alguns processos, algumas
estruturas dinâmicas que estão sempre presentes, apesar das diferentes formas e
colorações que possam tomar. E que talvez sacar como essas artimanhas estruturais do
patriarcado operam seja uma pista de possíveis caminhos alternativos à essa masculinidade
que nos é imposta.
E me parece que uma dessas estruturas
fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio isso,
principalmente para quem já tem um caminho andado nessas treta de gênero, mas para mim, e
arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é
como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho
percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito
invizibilizada. E porisso se torna muito difícil de sacar e de sentir. Difícil de
nomear, de criar uma narrativa sobre e mais ainda de pensar coletivamente sobre
isso. E, portanto, é muito difícil de ter referências que ajudem a compreender isso
que nos afeta e está tão presente na formação do “ser homem”.
*
Tem um filme, que eu assisti há um tempão
atrás, tava no colégio ainda. É um filme do Kubrick chamado Nascido para matar (Full Metal Jacket, 1987 )e
em uma das histórias contadas – são duas – ele explicita de maneira muito
didática e crua como a lógica da violência patriarcal opera entre os homens. É um filme militar que se passa em um lugar de treinamento de soldados que vão para
o Vietnã.
O filme conta a história de um menino que está servindo ao
exército dos EUA. Só que tem um problema: o menino é completamente inadaptado
ao esquema militar. Ele está acima do peso, gosta de dormir até tarde e é atrapalhado
com o próprio corpo, aquilo que se chama por aí de desengonçado. Não consegue
fazer os exercícios, esconde chocolate debaixo do travesseiro, é dorminhoco,
enfim, faz tudo de um jeito considerado
muito ruim para os padrões do exército. O resultado dessa inadequação é que sua
vida no quartel é uma sequencia de episódios onde ele é sempre humilhado. Muito
humilhado. O grande símbolo disso é o sargento do seu batalhão, seu “educador”
por excelência. Logo no começo do filme,
o menino passa a ser chamado de “saco de merda” pelo sargento. Outro recurso
utilizado por ele é sempre se referir à família do menino, principalmente às
mulheres, ofendendo e fazendo referências que remetem à violência sexual contra
elas. Fora os castigos físicos que se tornam a regra na vida do menino. E,
claro, que essas práticas passam a ser repetidas por todos os soldados do
batalhão que vão seguindo o grande sargento educador. Boa parte do filme é a descrição desse massacre cotidiano que esse moleque vai
passando ininterruptamente.
Só que um dia as coisas começam a
mudar. O menino descobre uma atividade em
que ele é muito bom, bem melhor do que os outros. Ele descobre que é um exímio
atirador. Ele saber armar, atirar e desmontar uma metralhadora como ninguém
mais lá. E, por causa disso, passa a ser respeitado. E se sentindo importante e reconhecido, ele se
aperfeiçoa cada vez mais. Se dedica a aprender a atirar. A montar sua
metralhadora. A reconhecer as balas e tudo que tem a ver com esse mundo. O
filme tem cenas forte que mostram ele se
dedicando quase obssesivamente ao aprendizado da arma. Fica bem claro como ele descobre
o caminho para deixar de ser um saco de merda e se joga de cabeça nisso até virar um atirador de elite . De saco de merda
a atirador de elite do exército dos EUA. Duas imagens radicais, extremas e muito
didáticas. O sargento conseguiu seu objetivo. Só que não.
No fim do filme, Kubrick se dedica a
demonstrar as sequelas que esse processo de intensa violência trouxe. Como o
menino foi totalmente arrebentado nesse processo. Seu corpo muda, seus afetos
se transformam, seu olhar se torna outro olhar. Ele se torna uma máquina de matar.
E o filme termina quando ele mata o sargento e se mata. Até antes de receber o tiro
final, mesmo ameaçado por uma metralhadora, o sargento continua se referindo a
ele como saco de merda. Até ser morto. E então ele se mata. A cena toda se
passa em um banheiro.
*
Faz um tempo
já que tô querendo escrever sobre esse filme no contexto de pensar a masculinidade. Porque tenho a
impressão que isso que aparece no filme de maneira radicalizada e explícita, acontece
de forma menos nítida no cotidiano da vida dos homens em diferentes e inúmeras
situações. Desde menininhos somos treinados pela violência a desejar muito
estar no topo da pirâmide patriarcal e, ao mesmo tempo, nos mostram como ser
inadaptado a isso é sinônimo de ser o pior dos seres. Como isso nos faz sermos feios,
defeituosos, burros e tudo mais que é considerado
ruim. Te convencer que você é o pior dos seres – e saco de merda é uma ótima
imagem – e te fazer querer escapar disso
se tornando o vencedor entre os vencedores - um atirador de elite - é
uma metáfora muito bem feita de como opera a educação da violência para ser homem
no patriarcado.
Só
que nós homens, apesar de sermos
moldados por essa lógica desde muito
cedo e irmos cedendo cada vez mais a ela até chegar na nossa idade adulta, não
somos só isso. Apesar de sermos muito isso, porque essa parada é realmente
muito eficaz, não somos só isso. E isso fica claro quando olhamos para as
crianças. A capacidade que a criança tem de escapar desses lugares que a querem
colocar é uma boa mostra de como dá pra ser uma outra coisa, que sabemos e
podemos ser outra coisa. A treta é que vão insidiosamente nos enfiando guela
abaixo essa série de valores, modos de
ser e de sentir – acho que é modo de não
sentir na verdade, de embotar o próprio sentir- que vamos nos transformando nesses
seres altamente brutalizados e distantes de si mesmos. Pela educação patriarcal
– sua violência- vamos emudecendo
nossas vozes e sensibilidades que caminham
para outros rumos. Caminho triste, o machismo vai tomando conta de todo canto
nosso e nos coloca pra gastar toda nossas energias em aprender e ser do jeito
que um homem deve ser.
Mas acho que de tanto andar por aí
prestando atenção nessas histórias, começo a perceber que nós resistimos a
isso. Muitas vezes das formas mais impensadas e esdrúxulas. Muitas vezes com
violência e ações aparentemente sem sentido. Poucas vezes com serenidade. Quase nunca admitindo que temos um problema
chamado machismo. E, infelizmente, quase sempre de maneira muito solitária. Mas
tenho começado a reconhecer que, de uma forma ou outra, resistimos. Em alguns
momentos, muitas vezes misturada com um monte de outras coisas, de forma
confusa e sem contorno certo, conseguimos revelar que não nos esgotamos nessa
lógica da violência.
Esses dias fiz um exercício corporal
ai e,no meio das mil treta sem fim que apareceram, tinha tipo um pontinho, um
lugarzinho lá no meio que era diferente. Era azul, verde e tinha um tanto de
passarinho. E a sensação que eu fiquei é que ali era um desses lugares distintos
da borrasca machista. Reconhecer e entender a lógica do machismo na nossa vida
ajuda a reconhecer e começar a entender lugares alternativos a isso. Como
numa espécie de dupla consciência de nós mesmos e de quem nós somos. Quanto
mais conhecemos uma, mais conhecemos a outra.
Era um lugarzinho pequeno e meio
confuso ainda, sem forma certa. Meio desengonçado. Mas tinha um tanto de
passarinho.
Achei um bom começo.