terça-feira, 27 de outubro de 2015

Meu primeiro assédio, uma confissão. Ou quase.

Além disso, esse espaço narrativo também deve servir –  principalmente –para os homens explicitarem sua própria empáfia e sentimento de superioridade. Admitirem e deixarem visível o seu  prazer pela dominação, seu prazer pelo conforto do privilégio. O prazer de ser aquele que manda, o prazer de ser aquele que é obedecido e vê o outro se submeter. Como é sentir isso parceiro, conta aí. Tem coragem?
            Uma das coisas que tem estado muito presente esses dias no universo da  internet é o tal  #primeiroassédio. Parece que tem uma moça de doze anos em um programa de TV aí que anda sendo comentada e assediada como se fosse uma mulher adulta. Por conta desse acontecimento, uma organização resolveu lançar essa campanha que consiste em contar na internet como foi o seu primeiro assédio sofrido. Mais de setenta mil mulheres mandaram seus relatos e a coisa ganhou grande repercussão.
Daí que uma amiga compartilhou o relato de uma cara chamado João, que resolveu escrever sobre seu primeiro assédio. Só que com uma diferença. Ele relatou o assédio em que ele era o assediador. Contou como foi assediar uma amiga sua no meio da rua quando ele tinha catorze anos. E de como se sentiu e o que pensa sobre isso agora,  duas décadas depois. Eu gostei muito do escrito dele.
 Já pensou se nós homens resolvêssemos admitir e discutir como temos reproduzido e sido – por vezes sem ter a menor consciência disso – veículos desse projeto civilizatório estruturado na violência de gênero? E se setenta mil homens resolvessem contar como fizeram e como se sentiram ao cometer um assédio sexual, um abuso ou um estupro. Dá pra imaginar uma coisa dessas? Eu juro que eu não consigo nem imaginar. Juntamente daquelas que sofreram, íamos ter acesso ao sem número de histórias de quem faz  sofrer e se omite sobre isso.
Eu aqui comigo mesmo fico pensando que um acontecimento assim mereceria uma dessas metáforas  mirabolantes do Italo Calvino, ou então um desses escritos do Saramago que consegue dizer das coisas miúdas e magnânimas em uma mesma imagem definitiva. Algo como uma tempestade sem fim só que ao contrário, ou um reino que todos resolveram passar um ano todo andando para trás, sei lá. Como não tenho a menos capacidade pra isso, me permito apenas começar a imaginar. E, na dimensão pessoal, puxar de leve o fio dessas memórias e andar um poquinho pra trás em mim mesmo. Nas minhas próprias memórias escondidas.  
Daí que fui atrás do meu primeiro assédio. Até esse instante que estou escrevendo não tinha lembrado do que podia ser isso.  Depois de um tempo aqui lembrei. Escrever é uma coisa tão boa né... os trem aparece na cabeça... Daí lembrei de algo que me senti inclinado a fazer uma vez há um tempão atrás. Violência de classe, de gênero. Devia ter doze, treze anos talvez. Mas não tenho coragem de contar o que foi não. Talvez por ser algo menos “leve” do confessado pelo João. Como ele mesmo diz no seu escrito, dá muita vergonha. Vergonha da própria covardia. O machismo é, entre tantas coisas, muito covarde. E não é simples desaprender isso. Desaprender de ser covarde. Eu preciso de ajuda pra isso.
 Mas é preciso puxar esse fio de memórias né, desenrolar esses torvelinhos e criar essas narrativas, criar espaço para os homens falarem disso. E, ao se sentirem envergonhados, retomarem o próprio medo e as inseguranças que se embaraçam nessas histórias de violência. Se olharem o escrito do João, está ali, motivando o assédio que ele cometeu, o medo de ser “meio viadinho” que ele sempre sofreu. De outros homens, muito provavelmente. Não é raro isso acontecer. Aliás, essa é a regra. E uma ação violenta gera outra ação violenta e assim vai. Onde começa e termina essa sinistra cadeia?
Além disso, esse espaço narrativo também deveria servir –  principalmente –para os homens explicitarem sua própria empáfia e sentimento de superioridade. Admitirem e deixarem visível o seu  prazer pela dominação, seu prazer pelo conforto do privilégio. O prazer de ser aquele que manda, o prazer de ser aquele que é obedecido e vê o outro se submeter. Como é sentir isso parceiro, conta aí. Tem coragem?
Culpa, prazer, medo, superioridade, privilégio, humilhação. É tanta coisa misturada nesses coisas invisibilizadas. Com o machismo entre nós homens não é diferente. È mesmo um prazer isso que se sente? Que tipo de prazer é esse? È mesmo um sofrimento, uma dor que motiva essas coisas? De que tipo? Se sentir superior é mesmo tão bom assim? E é mais o quê além disso? Que que rola nas interna dessa história? Escarafunchar as entranhas do pátrio poder. É disso que se trata. Já pensou, setenta mil homens desenrolando sobre isso pra todo mundo ler? Tempestade sem fim ao contrário, o bucho dos macho tudo aberto e revirado.    
Não consegui falar do assédio que me lembrei. Senti vergonha. Depois me senti covarde de não fazer. Em algum momento ai me senti o máximo, a fina flor da macharia arrependida. A essa altura, no finzinho do texto, releio e acho tudo que escrevi um lixo sem tamanho. Devia apagar tudo e deixar essas besteiras de lado. È assim mesmo, um monte de sentimento, imagem, lembranças ao mesmo tempo. Tudo meio confuso e embolado. Coisa monossílaba querendo deixar de ser. E que, devagar, vai  deixando.
È capaz do João estar sentindo essas coisas. E outros homens que eu vi que  também escreveram sobre o primeiro assédio. Aos poucos vamos aparecendo acho. Talvez até não sejamos tão poucos né, vai saber. Como disse um amigo pra mim hoje, esse é um assunto que não pode mais esperar.
E eu concordo plenamente com ele.
Seguimos.


ps: olha o texto do João:

 https://www.facebook.com/jreisfaria/posts/10203540686076853?fref=nf


quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Latidos

Desde molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio das pernas. Toma a gente inteiro. 

Ando com muito medo do ódio. Tenho pensado que estamos vivendo um tempo muito perigoso. Que estamos em um período onde muita coisa, muitas práticas, sentimentos e atitudes que gravitam em torno da palavra ódio vão encontrar terreno fértil para se fortalecer e se espraiar cada dia mais.   E deve ser por isso, justamente por isso que ando pensando muito mais no amor. Num mundo asfixiante de tanto ódio, fica essa vontade de respiro fundo que o amor dá. E veio também a vontade de entender a relação– ou a não-relação – disso que  é o amor com essa  nossa estupidez fundamental, esse mar sem fim de  desamor que é o machismo.
Nesses tempos de ódio por tudo quanto é lado e jeito, acho que é preciso meditar um pouco mais sobre o amor. Sobre o Amor, melhor assim. Porque tô falando de Amor como jeito de botar atenção no mundo, Amor como jeito de mexer as mãos, Amor nas coisas miudinhas e depois nas outras. Amor na forma de piscar os olhos.  Amor como uma forma de inteligência superlativa e abundante. Como fertilidade, como erótica, Amor como um torvelinho d´agua burilando – essa última quem  me soprou foi a índia shipibo que me anda arrodeada por esses tempos.
Cala essa boca!
Mal acabo de escrever esse último parágrafo  e já sinto um destacamento de dobermans e gárgulas babando ódio branco virem pra cima dessas primeiras inquietação sobre o amor.  Vem direto e sem dó. Engancham as presas e os dentes até estraçalhar tudo.
 Cala boca seu idiota! Para com essa frescura de falar de amor! Só faltava essa agora! Isso é coisa de viado!
Mas eu sou de esquerda e super estudado. “Sei me defender” penso comigo. “Puta discurso escroto, essas vozes conservadoras não vão funcionar. Sou um homem esclarecido, esse discurso raso e banal não me atinge. Repudio todos vocês!” . E eles pouco ligam, continuam incansáveis até só sobrar um ou outro monossílabo sem sentido. É assim. Triste assim. O que começa num quase querer ser amor vira xingamento estraçalhado no fundo da gente. E vamos, aos poucos, desde meninos, desaprendendo a sentir. Aprendendo, pelo desamor, a ser monossilábicos.
A sensação é mais ou menos assim: é como se eu estivesse começando um mosaico; todas suas pedrinhas coloridas meio ali por perto, algumas formas já pela cabeça “Acho que vou fazer assim”, vontade de juntar tal e tal cor, uma lembrança boa que vem  de longe  e pousa e dá até uma expiração mais funda. Cala essa boca seu idiota!! Chega uma botina chutando e estraçalhando tudo, marcando o chute (o tiro, o estupro, a violência letal) como memória a ser conservada. Qualquer semelhança com a vida real vivida por jovens pretos periféricos, índios sendo massacrados em sua terras ancestrais, povos de terreiro sendo apedrejados e mulheres e gays sofrendo violência extrema não é mera coincidência. Eis o  patriarcado em plena operação. E é assim  com todxs. E com os homens e entre os homens também. Opera criando códigos, lógicas e práticas que são passadas desde muito cedo aos homens que passam a reproduzir isso com os outros homens. Desde molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio das pernas. Toma a gente inteiro. 
Tenho uma criança muito querida que convivo bastante. Vizinha aqui de casa, mora aí na frente. Encontro com ela sempre, somos muito próximos e nos adoramos. Já tem um tempo, que o jeito dela me saudar é me dando um monte de porrada. Tento falar e conversar com ela. Tento abraçá-la e brincar sem tanta truculência. Para que tenha outra referência pelo menos. E saiba que não precisa ser o tempo todo assim...  Aprendeu na escolinha, se não se defendesse e aprendesse a bater também, ia ficar apanhando sem parar.  Foi o pai que  me explicou .
É assim nas mega operações militares que destroem nações inteiras.
É assim no universo de idéias de um homem machista escrevendo um texto. 
Cala a boca!
Os gárgulas  e os dobermans chegam novamente. Latem e esgrinham no fundo de mim. E me dão medo de ser piegas porque querer falar de amor. Medo de ser moralista. Medo de ser superficial e ridículo. Medo de ser viado. A essa altura, já não consigo mais escrever nada. O campo fértil foi devidamente estraçalhado e agora só nasce monossílabo. Monocultura do monossílabo, alimentado pela baba branca do ódio.
Estou chegando perto do final do texto. Antes de começar,  tinha pensado que ia falar de  um livro do Ítalo Calvino, talvez de um filme do Kubrick e do mundo simbólico que envolve a noção  de Pachamama. Até escrevi pra uma amiga, falamos de literatura e do mar, de um sonho que eu tive. Antes de começar esse texto, ouvi uma música que eu gosto, que lembra uma floresta...  Ouvi os pássaros que moram aqui perto de mim, tão perto que às vezes seu canto parece sair do meu coração.  E entre algum desses momentos fechei os olhos por mais tempo e pensei que era bom poder falar de amor.
O Chico Buarque tem uma canção que ele fala de um vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar. Acho que pra nós, homens machistas, o amor está assim, escondido no fundo de algum armário.  E é preciso passar por todo um bando de construções odiosas pra chegar até ele.  Melhor dizendo, é necessário reconhecer e desconstruir ao mesmo tempo. E é preciso entender que isso passa necessariamente por colocar em cheque uma série de privilégios. Mas isso já é outra história...
A música do Chico fala de dançar por toda a cidade. Seria tão bom... 

Lá vem eles de novo, já ouço os latidos.


ps: Nada contra os dobermans viu gente. È que quando eu era moleque, eles eram o maio símbolo de vígilia e medo. Só isso. Acho que eles devem ser alvos dessa treta toda também. Como dizem por aí: “el patriarcado nos jode a todxs”.

sábado, 3 de outubro de 2015

Pero ya no son todos, uma apresentação.
Aunque fueron cabrones los compañeros hombres” y “hay algunos cuantos todavía que se ponen cabroncitos, pero ya no son todos”. 
Já tem um tempo que ando matutano essa estória de machismo. Querendo fuçar mais nisso dentro do mundo masculino, como ele se realiza, se expressa, como o patriarcado age, opera, se realiza, se desdobra, se mantêm, mantem privilégios, mantêm violências e invisibilidades. Enfim como, no mundo dos homens e suas masculinidades se estabelece o tal do machismo.
                                                     ******
Olá! Domingo à noite, lua cheia, noite de eclipse. Tenho uns amigos pataxó que , quando tem eclipse, saem de casa batendo panela e gritando, vai lua vai! È para ajudar a lua a vencer a  luta contra o monstro que está comendo ela. 
Tá uma chuvinha fina e necessária na cidade de São Paulo. A casa tá uma bagunça só. Será arrumada amanhã. Hoje não né, tá tudo muito domingo. A chuvinha , mesmo fina, cala o pássaro solitário que canta aqui na árvore. Moro em uma casa na árvore, e isso é muito importante para entender o que eu escrevo. Mas isso não vem ao caso agora. 
Dai que resolvi vir aqui escrever algo simples, só pra apresentar o blog, penso eu comigo mesmo e com os outros invisíveis que me arrodeiam - em algum momento falo deles agora também não é hora disso. Nada de inventar muito- penso eu de novo. Só apresentar rapidinho o blog e pronto, é isso aí.
                                                            *
Já tem um tempo que ando matutano essa estória de machismo. Querendo fuçar mais nisso dentro do mundo masculino, como ele se realiza, se expressa, como o patriarcado age, opera, se realiza, se desdobra, se mantêm, mantem privilégios, mantêm violências e invisibilidades. Enfim como, no mundo dos homens e suas masculinidades, se estabelece o tal do machismo.
O pressuposto básico de onde parti não é lá dos mais elogiosos aos homens. Já faz um tempo que ando muito impressionado com nossa dificuldade de falar sobre o tema do machismo. Falar que eu digo é algo do tipo conseguir desenvolver mais de três frases coerentes sobre esse tema,  frases que sejam encadeadas e que consigam montar uma idéia básica que abra uma reflexão. Dá pra contar nos dedos as vezes que vi isso acontecendo. Nos dedos de uma mão. Isso porque vivo no mundo das esquerdas das culturas das críticas e esses rocamboles todos onde, teoricamente, esse é um assunto a ser  pensado e refletido a todo momento. Só que não. Não é isso que acontece. Isso é o que eu acho. Espero estar errado e  sendo injusto. Tomara que seja engano meu, má vontade, ensimesmamento meu que não me permite ver o que tá rolando. Tomara mesmo, de verdade. Mas minha hipótese é que não. Daí resolvi escrever sobre isso, levantar essa bola, ver se alguém quer falar disso comigo.
           Há também nessa decisão uma necessidade de encontrar companhia nessa minha inquietação. Já que tenho tanta dificuldade de encontrar pares que queiram falar disso no mundo real, talvez aqui pela net eles apareçam. E elas né. Enfim, elxs. Seria ótimo.
Escrevo pra ver se alguém tem vontade de ler e dividir um pouco suas experiências e escrevo também pra dividir as minhas, o que eu penso, o que eu vivo, o que me faz tropeçar em mim mesmo toda hora, me perguntar porque eu sou/fiquei assim. Pra falar um pouco dessas coisas que me fazem querer bater a cabeça na parede de desespero por me perceber tão tosco, tão embotado.
Vou parar de escrever porque isso é só uma apresentação simples do que é esse espaço. E ele é isso, um blog que vai ter uns textos postados aqui a cada dez, quinze dias, onde eu vou  tentar falar um pouco a minha condição de homem e da condição de homem em geral (seja lá o que é isso for). Não sou estudioso do assunto, não é por aí meu interesse. Sou homem, sou tosco e queria muito me tornar um pouco menos. E acho que seria da hora se os homens que sentem isso pudessem começar a trocar idéia e ver o que rola a partir daí. Acho que deve ter alguém já fazendo isso já em algum canto, às vezes assim pela net encontre mais fácil.
                                                                 ***
           O título “pero ya no sono todos” eu tirei de uma postagem no site Radio Zapatista – http://radiozapatista.org/?p=13086 - onde uma figura desse coletivo narra um dia de debates num encontro lá em Chiapas sobre a condição das mulheres zapatistas e de outras latitudes.  Pusta relato legal. Vale a pena ler. Daí tem uma hora lá que uma liderança zapatista diz “Aunque fueron cabrones los compañeros hombres” y “hay algunos cuantos todavía que se ponen cabroncitos, pero ya no son todos”.Ffiquei com essa frase me rondando depois de ler esse texto. Ya no son todos…





           Por conta desse relato também fiz um pequeno escrito. Vou colocá-lo aqui pra fechar essa apresentação. Daí depois já vou colocar os dois textos que já produzi esses tempos aí. Um já saiu no blog da Forum, aquela revista. Chama O homem e sua anta interior Foi a Jarid Arraes, uma figura firmeza que eu conheci nessas andança por aí que leu e achou bom publicar. O outro não saiu ainda por canto nenhum. Chama homem, um monossílaboVamos ver se ganho fôlego e tempo pra ir publicando por aqui. Comenta aí quem quiser, escreve também. Espero que gostem.
Até acabou de chover já. Daqui a pouco o passarinho chega acho. Pra cantar pra lua cheia em eclipse. E eu vou logo logo pra rede. Dia de lua cheia o povo devia dormir tudo na rede. As pessoas não tem idéia o bem que isso faz pra gente. Mas vou ficar levantando pra ver se a lua tá aparecendo. Quem sabe bato até uma panelinha. Vai saber né…
                                                         ***
                                            Escrito sem rosto.
Sempre vi meu rosto porque ele sempre esteve à vista. Sempre me reconheci, porque sempre fui reconhecido. E o que vi e sempre foi visto, o que reconheci e sempre foi reconhecido, hoje parece matéria disforme. Retrato de um homem feito coisa. Onde me reconheci- e me reconheceram - vejo hoje esse acúmulo de violência petrificada, dor instalada, seca, escombro de escombros. Retrato nú de um poder sem memória.
Tão difícil escrever disso né. Escrever sobre o que não se sabe, não se conhece. Escrever sobre o que é difícil até de começar a querer saber. Um sofisticado homem branco filósofo  traçando um sofisticado diálogo conceitual com  outro sofisticado homem branco filósofo escreveu sobre uma mulher indígena guatemalteca, que seu rosto emergindo da violência colonial era o rosto de nossa libertação que também emergia.
Pois bem, amigos sofisticados homens brancos e filósofos. Não tenho esa certeza sobre o rosto dessas mulheres. E não sei se decidirmos - desde nossos doutos privilégios - que a libertação de todos tem a cara de uma mulher indígena é algo que deva ser feito.
Eu prefiro falar de um outro rosto. Sobre o rosto que esboroa , que definha, que se retorce nas dores do antiparto do poder quando se vê minimamente ameaçado.
 Acho que devíamos contar do desespero infantil que sentimos quando vemos  ir embora um só filigrana da falsa certeza que carregamos no semblante. Contar que essa inaptidão para a vida compartilhada nos fez especialistas em submeter, oprimir e violentar sem dó. Rindo por dentro, Do porão que urra às minímas delicadezas, dilacerando tudo.
Contar que assim temos nossos rostos reconhecidos. Contar que é  que assim nos reconhecemos. Contar que quase não sabemos de nada por nós mesmo, mas aprendemos a nos manter nesse puro brilhar, mandando e fingindo que sabemos. O preço disso? Não importa.
Amigos sofisticados homens brancos  e  filósofos, esse rosto que se contorce ao mínimo esforço, precisa ser dito, exposto, escancarado em seu vício e necessidade cega de dominação. Essa necessidade que muitos, para dizer dela, usam a palavra cão. A palavra porco.
Se os amigos homens brancos filósofos e sofisticados querem mesmo essa libertação que está em muitas das frases e análises tão difíceis que vivem elaborando, comecemos por tocar em nosso próprio rosto, essa matéria negativa. Dai quem sabe poder ouvir a frase da indígena zapatista e sentir o fio de água – hilo dulce de la muerte - descer vagaroso por entre nossas faces:
                 Aunque fueron cabrones los compañeros hombres” y “hay algunos cuantos todavía que se ponen cabroncitos, pero ya no son todos”.
Homem, um monossílabo
                                  Homem, um monossílabo.
      Segunda a noite, uma portinha discreta em uma rua paralela de uma grande avenida de alguma grande cidade. Ou  em alguma outra cidade do país, da América Latina, do planeta. Entro sem tocar a campainha. Alguns já estão lá, outros vão chegando até que as cadeiras em roda na única salinha iluminada da casa ficam quase completas. Depois de ouvir dois ou três relatos de outros companheiros, resolvo falar.
-        Olá, boa noite. Meu nome é Bruno e sou  machista. Sou tão  machista que nem consigo perceber direito isso. As pessoas –mulheres em sua amplíssima maioria- até falam, apontam. A às vezes eu até percebo mas, no momento seguinte, parece que já nem lembro mais. Quando era menino  fui ver um filme chamado Historia sem fim. Depois de anos até li o livro, em um lugar distante que eu tava.   Nessa estória tem um personagem que é o Nada. Ele vai acabando com tudo aquilo que a fertilidade infinita da imaginação humana já criou. Acho que é o  Nada que sempre vem comer minha imaginação quando se trata desse assunto. Até percebo um pouquinho do meu machismo,  mas dai vem o Nada e devora isso. Ele absorve tudo de volta pra ele. Vira só um ou outro monossílabo. E volto a não pensar mais  nada sobre isso.  É uma situação difícil. Quero que ela mude. E eu preciso de ajuda.  
        Mas daí, hoje de tarde, no esforço de  pensar em alguma coisa pra contar pra vocês lembrei de uma história. E dessa vez o Nada não veio. Queria compartilhar ela com vocês .
                                                        *
              Feriado de ano novo. Vinte cinco pessoas alugam uma casa na praia. Alguns já se conhecem – amigos e amigas desde muitos anos– outros são novos na turma, vieram convidados por alguém e logo se enturmam, todos se conhecem, uns se gostam mais, outros nem tanto . E o feriado vai passando. Nesses meios, um casal se forma, ele e ela se conhecem, rola um clima e ficam. Transam.
           Dia seguinte. A menina vai tomar banho e escuta pela janela, o menino contando para uma roda de amigos homens a transa que eles tinham tido. E é claro que ele estava fazendo isso como quem descreve a conquista do inimigo e usando seu conjunto estreito de monossílabos pra isso.  
        A menina saiu do banheiro na hora e foi até o lugar onde o rapaz estava e deu-lhe um esculacho daqueles que fez o nosso homem monossílabo perder o caminho de casa. Os homens monossílabos né, eram vários. Mas os outros logo se recuperaram. Na terra arrasada dos monossílabos, o Nada absorve facilmentee experiências como essas. Rapidamente todos voltaram a não pensar nada sobre isso. Menos  um.
          No outro dia. O rapaz, conversando de maneira mais reservada com seu melhor amigo em um quarto da casa, cai em um choro convulsivo. Numa dessas catarses que o mundo se extingue enquanto as àguas se abrem, o cara tem um momento glorioso de acesso ao  mundo de seus afetos. Então ele se abre pro amigo e diz que tinha se apaixonado pela menina, que tinha sido maravilhoso ficar com ela e que queria muito que ela ficasse com ele, que eles pudessem namorar e ver o que ia dar e tal.  Chorava copiosamente sem nem entender direito porque, mas sabia que ele tinha feito algo que tinha zoado geral o esquema. Sabia que isso tinha a ver com o que tinha falado pros amigos e ela tinha ouvido. Sabia que ela tinha ficado possessa e que a coisa tinha que ter sido feita de outra maneira. Só que não sabia mais nada. E esse talvez seja o principal problema. E chora sem parar feito um menino de três anos. Aos três anos o Nada ainda não devorou nosso choro. Mal sabe ele, mas deviam haver muitas cores saindo dos olhos deles naquela hora. E toda uma copiosa gramática em torvelinho desajuntado.
                                                       *
           O homem em seu machismo empedernido é um analfabeto emocional. Ele mal consegue elaborar uma frase simples sobre o que sente, como sente e porque sente. Não tem gramática para isso. Não aprendeu. Não ensinaram. Às vezes penso até que essa gramática não foi nem  criada, tamanha a terra infértil do patriarcado. O máximo que temos é alguns monossílabos que mal dizem alguma coisa.  São só a expressão dessa afetividade mal realizada, sem artesania , síntese disforme. Em suas infinitas expressões, o patriarcado veio cotidianamente, ali, bem do nosso lado, fiando fininho em cada passinho da vida, mostrando e ensinando a ferro e fogo a enfiar em algum fundo bem inacessível nossas possibilidades de sentir e se expressar.  Impôs, pela didática da  brutalidade, pela pedra,  que a vida do homem deve ser  monossilábica e estéril.
           Desde bebê e quando se é menininho; depois, quando se aprende a socializar fora de casa e da família; quando se começa na vida escolar e depois quando começa a vida sexual. Quando se cresce e quando se envelhece. Para cada momento a pedrada certa, um novo Cala essa boca! mais um embotamento. Em alguma hora desse caminho a gente esquece ou cansa. E fica então esse silêncio embrutecido, mero monossílabo.    E viramos pessoas com um universo afetivo sem matiz, descuidado, arredio. Tudo é preto ou branco, é mandar ou obedecer. O patriarcado conseguiu, viramos um macho. Ele nos calou. Um homem macho e seu monossílabo existir. Mesmo que venha muitas vezes envolto em muitas e delicadas palavras, atos e sentimentos. O machismo é uma coisa muito triste.
          Outro dia li uma notícia sobre um rapaz que tinha sido morto por espancamento por seu próprio pai. Motivo: o rapaz estava lavando louça. Estória radical que expressa um dos extremos onde essa estupidez pode levar. Enquanto escrevia esse texto fui lembrando de outras histórias como essa. Foram se desvirando dentro de mim. Fui pegando a pontinha delas e puxando  de volta. Vieram se desfiando na minha memória, saindo do estado de monossílabo. Não quero mais deixar essas minhas memórias  absortas pelo Nada, escondidas em algum fundo  perdido em mim.
        Chega de sentir que minha alma é muda. Ou melhor, que ela foi calada.
                                                    *
          Enquanto escrevia esse texto , buscando desenredar o fio das memórias, e essas cores que começam- sua gramática - andaram um tanto de passarinho por aqui, arrodeando elas.  E acho que ouvi também uma voz de uma índia Shipibo, lá das Amazônia peruana.  Estiveram me assobiando suas coisas durante todo o tempo desse texto.  Acho que espantando o Nada  pra longe um pouco. Pelo menos um pouco.
         Daí saiu esse tanto de palavra.
O homem e sua anta interior
  Porque se tem uma coisa que me chama atenção nessa história toda é como o patriarcado veio sedimentando (propositalmente?) nos homens uma incapacidade de reflexão minima sobre as práticas machistas. O macho (direita, esquerda, por dentro, por fora, concavo, convexo, lunar, terráqueo, de Júpiter, não importa) é uma anta.
Outro dia me caiu nas mãos (na tela) o texto Entre quatro paredes: o machista de esquerda. Do blog da Anna P. Lá ela vai falando de como o macho de esquerda é “fofo” e super anti comportamento machistas. Homens com florzinha no cabelo diz a Anna em um determinado momento lá. Até que então ele chega “entre quatro paredes” e aí tudo fica bem diferente. A Anna vai citando  exemplos do dia a dia, desse cotidiano “entre quatro paredes” em que o esquerdo macho vai se revelando. Lendo esse texto fiquei pensando em um outro momentoem  que o macho de esquerda também se revela em sua versão “macho como todo macho deve ser”. É quando ele está somente entres seus pares varões, qunado estão os homens entre os homens, tendo conversa de homens. Tô chamando de conversa porque ando em dias generosos e compreensivos, coisa das astrologias me disse uma amiga. Na verdade, não sei se o nome mais adequado seria conversa, acho que está mais para mais para uma socialização rudimentar que inclui algo como grunhidos, monossílabos sem muito sentido e umas risadas meios bestiais. Parece exagero né? O pior é que é meio assim mesmo. E olha, nessa hora, a tal florzinha do cabelo não passa nem no mesmo quarteirão. Se esconde quietinha longe dali com medo de ser esmagada.
Infelizmente esse “fofo” público de que fala o texto não costuma durar mais que três segundos quando se está só entre machos. Claro, entre machos de esquerda isso ganha lá algum verniz um pouquinho menos boçal, até para o macho-autor não ser reprimido pelos próprios pares. Alguns dos esquerdomachos já aprenderam algumas noções básicas de como não ser escorraçado pelas mulheres libertárias e gostam de mostrar sua sabedoria dando aula para os outros. Por favor reparem que eu escrevi que eles aprenderam algumas noções básicas de como não ser escorraçado. Isso é muito diferente de colocar o machismo em questão. Porque se tem uma coisa que me chama atenção nessa história toda é como o patriarcado veio sedimentando (propositalmente?) nos homens uma incapacidade de reflexão minima sobre as práticas machistas. O macho (direita, esquerda, por dentro, por fora, concavo, convexo, lunar, terráqueo, de Júpiter, não importa) é uma anta. E, no caso, uma anta de esquerda. Tadinha da anta.
É impressionante como séculos repressão e violência contra nós mesmos vieram nos deixando com uma extrema dificuldade – em alguns muitos casos um impedimento total - de conseguir refletir um tiquinho mínimo do mínimo sobre nossa condição e nosso lugar na vida social enquanto homens, enquanto topo da pirâmide social do patriarcado. A total incapacidade de ultrapassar o nivel uga buga primitivo total na capacidade de pensar a própria masculinidade é a regra que impera. Seja nos espaços de militância, nos espaços cult bacaninha, circuitos capoeiras e outros pop Brasil ou nas quebrada resisitindo. A tosquera é geral e irrestrita. Mesmo quando há obediência a esses comportamentos politicamente corretos do receituário do macho de esquerda, há muito pouco reflexão séria e percepção da gravidade dessa parada, de como isso é realmente responsável por parte significativa da violência que grassa ai no mundão afora e no dentro, bem lá no dentro dos impasses que tomam nossa vida pessoal..
Eu acho relativamente simples uma primeira explicação direta dessa ausência de reflexão. Me perdoem companheiros se algum de vocês está lendo isso e ficando incomodado, mas exigir essa auto reflexão de nós é quase como exigir do Conan o bárbaro um tratado sobre  a transparência sutil das sensibilidades humanas. Ou pedir pra um cágado sair voando. Simplesmente não rola né… Seja  esquerda ou direita ou outra variável, é precios admitir e reconhecer nossa falta de inteligência emocional para colocarmos nosso machismo em questão. Daí que acho que o primeiro passo sincero a ser dado  é uma espécie de aceitação dessa condição de anta ontológica. Tipo: bom dia espelho, eis-me aqui diante de ti, um homem anta que não tem a menor capacidade de perceber  seu próprio machismo. Ou então algo como uma reunião  de alcoólicos anônimos. “Boa noite, meu nome é João e eu sou um alcoólico e quero muito parar. Estou aqui porque preciso de ajuda”. Tipo isso, só que com nossa condição de machistas. “E aí gente, meu nome é João e eu sou um machista. Só que eu nem percebo isso, eu quase nem acredito nisso.  Isso é a maior prova de que eu sou uma anta. Definitivamente eu preciso de ajuda”.  Somos atravessados por esse machismo, ele nos constitui, e para desconstruir isso é preciso primeiramente admiti-lo e depois, admitir que nem somos capazes de percebe-lo direito de tão embotados que nós fomos ficando. Triste né. Mas acho que é bem assim.
Mas daí pode vir um gaiato é falar assim: “ah, também não é assim, mesmo entre quatro paredes tem vários homens que estão modificando seu jeito de ser, estão dividindo tudo e sendo firmeza com suas companheiras. Olha, infelizmente, pelo o que eu tenho acompanhado por aí, mesmo esse diminuto grupo tem pouca capacidade de sacar mesmo qual é a pegada do machismo, sua extensão e desdobramentos nas diferentes dimensões da vida social no micro e no macro. Quando você está entre machos de esquerda, você descobre que tudo isso que a Anna apontou no texto (cuidar um pouco da casa, respeitar as vontades do outro, ser carinhoso de verdade,  etc) não passa de comportamento aprendido nivel 1, tipo o rato que aprendeu que se apertar a barra vai ganhar água. Limpar a casa = não ouvir blábláblá feminista na minha cabeça. Fazer coisas “sensíveis” = disfarçar minha escrotidão endêmica porque senão pega muito mal, afinal,  eu sou de esquerda. E por aí vai. Comportamento aprendido pra remediar respostas negativas imediatas. Poucos, bem poucos, alcançam repensar seriamente isso pra além dessa imediaticidade. E para isso, é preciso querer. E muito poucos parecem querer. Assim caminham os homens de esquerda. É triste. Mas acho que não estou exagerando não.
É claro que isso nos leva a pensar no que diabos fazemos com os homens desde que eles nascem pra se tornarem essa coisa tão embotada . A antificação do homem é um processo histórico de larga duração, uma construção psicossocial saturado de violência. Não é fácil tornar um ser humano sensível e aberto num macho altamente embrutecido. É preciso todo um sem número de violências, pequenas e grandes pra ele terminar assim, um ser tão alienado de si mesmo a ponto de não conseguir mais sentir. Mas isso já é outra história… O assunto é longo e as veredas muitas.
E antes de criar qualquer engano a meu respeito:  Meu nome é Bruno e eu sou Conan o Bárbaro, um anta de esquerda. Eu preciso de ajuda.
Cágado pode ser passarinho?