sábado, 3 de outubro de 2015

Homem, um monossílabo
                                  Homem, um monossílabo.
      Segunda a noite, uma portinha discreta em uma rua paralela de uma grande avenida de alguma grande cidade. Ou  em alguma outra cidade do país, da América Latina, do planeta. Entro sem tocar a campainha. Alguns já estão lá, outros vão chegando até que as cadeiras em roda na única salinha iluminada da casa ficam quase completas. Depois de ouvir dois ou três relatos de outros companheiros, resolvo falar.
-        Olá, boa noite. Meu nome é Bruno e sou  machista. Sou tão  machista que nem consigo perceber direito isso. As pessoas –mulheres em sua amplíssima maioria- até falam, apontam. A às vezes eu até percebo mas, no momento seguinte, parece que já nem lembro mais. Quando era menino  fui ver um filme chamado Historia sem fim. Depois de anos até li o livro, em um lugar distante que eu tava.   Nessa estória tem um personagem que é o Nada. Ele vai acabando com tudo aquilo que a fertilidade infinita da imaginação humana já criou. Acho que é o  Nada que sempre vem comer minha imaginação quando se trata desse assunto. Até percebo um pouquinho do meu machismo,  mas dai vem o Nada e devora isso. Ele absorve tudo de volta pra ele. Vira só um ou outro monossílabo. E volto a não pensar mais  nada sobre isso.  É uma situação difícil. Quero que ela mude. E eu preciso de ajuda.  
        Mas daí, hoje de tarde, no esforço de  pensar em alguma coisa pra contar pra vocês lembrei de uma história. E dessa vez o Nada não veio. Queria compartilhar ela com vocês .
                                                        *
              Feriado de ano novo. Vinte cinco pessoas alugam uma casa na praia. Alguns já se conhecem – amigos e amigas desde muitos anos– outros são novos na turma, vieram convidados por alguém e logo se enturmam, todos se conhecem, uns se gostam mais, outros nem tanto . E o feriado vai passando. Nesses meios, um casal se forma, ele e ela se conhecem, rola um clima e ficam. Transam.
           Dia seguinte. A menina vai tomar banho e escuta pela janela, o menino contando para uma roda de amigos homens a transa que eles tinham tido. E é claro que ele estava fazendo isso como quem descreve a conquista do inimigo e usando seu conjunto estreito de monossílabos pra isso.  
        A menina saiu do banheiro na hora e foi até o lugar onde o rapaz estava e deu-lhe um esculacho daqueles que fez o nosso homem monossílabo perder o caminho de casa. Os homens monossílabos né, eram vários. Mas os outros logo se recuperaram. Na terra arrasada dos monossílabos, o Nada absorve facilmentee experiências como essas. Rapidamente todos voltaram a não pensar nada sobre isso. Menos  um.
          No outro dia. O rapaz, conversando de maneira mais reservada com seu melhor amigo em um quarto da casa, cai em um choro convulsivo. Numa dessas catarses que o mundo se extingue enquanto as àguas se abrem, o cara tem um momento glorioso de acesso ao  mundo de seus afetos. Então ele se abre pro amigo e diz que tinha se apaixonado pela menina, que tinha sido maravilhoso ficar com ela e que queria muito que ela ficasse com ele, que eles pudessem namorar e ver o que ia dar e tal.  Chorava copiosamente sem nem entender direito porque, mas sabia que ele tinha feito algo que tinha zoado geral o esquema. Sabia que isso tinha a ver com o que tinha falado pros amigos e ela tinha ouvido. Sabia que ela tinha ficado possessa e que a coisa tinha que ter sido feita de outra maneira. Só que não sabia mais nada. E esse talvez seja o principal problema. E chora sem parar feito um menino de três anos. Aos três anos o Nada ainda não devorou nosso choro. Mal sabe ele, mas deviam haver muitas cores saindo dos olhos deles naquela hora. E toda uma copiosa gramática em torvelinho desajuntado.
                                                       *
           O homem em seu machismo empedernido é um analfabeto emocional. Ele mal consegue elaborar uma frase simples sobre o que sente, como sente e porque sente. Não tem gramática para isso. Não aprendeu. Não ensinaram. Às vezes penso até que essa gramática não foi nem  criada, tamanha a terra infértil do patriarcado. O máximo que temos é alguns monossílabos que mal dizem alguma coisa.  São só a expressão dessa afetividade mal realizada, sem artesania , síntese disforme. Em suas infinitas expressões, o patriarcado veio cotidianamente, ali, bem do nosso lado, fiando fininho em cada passinho da vida, mostrando e ensinando a ferro e fogo a enfiar em algum fundo bem inacessível nossas possibilidades de sentir e se expressar.  Impôs, pela didática da  brutalidade, pela pedra,  que a vida do homem deve ser  monossilábica e estéril.
           Desde bebê e quando se é menininho; depois, quando se aprende a socializar fora de casa e da família; quando se começa na vida escolar e depois quando começa a vida sexual. Quando se cresce e quando se envelhece. Para cada momento a pedrada certa, um novo Cala essa boca! mais um embotamento. Em alguma hora desse caminho a gente esquece ou cansa. E fica então esse silêncio embrutecido, mero monossílabo.    E viramos pessoas com um universo afetivo sem matiz, descuidado, arredio. Tudo é preto ou branco, é mandar ou obedecer. O patriarcado conseguiu, viramos um macho. Ele nos calou. Um homem macho e seu monossílabo existir. Mesmo que venha muitas vezes envolto em muitas e delicadas palavras, atos e sentimentos. O machismo é uma coisa muito triste.
          Outro dia li uma notícia sobre um rapaz que tinha sido morto por espancamento por seu próprio pai. Motivo: o rapaz estava lavando louça. Estória radical que expressa um dos extremos onde essa estupidez pode levar. Enquanto escrevia esse texto fui lembrando de outras histórias como essa. Foram se desvirando dentro de mim. Fui pegando a pontinha delas e puxando  de volta. Vieram se desfiando na minha memória, saindo do estado de monossílabo. Não quero mais deixar essas minhas memórias  absortas pelo Nada, escondidas em algum fundo  perdido em mim.
        Chega de sentir que minha alma é muda. Ou melhor, que ela foi calada.
                                                    *
          Enquanto escrevia esse texto , buscando desenredar o fio das memórias, e essas cores que começam- sua gramática - andaram um tanto de passarinho por aqui, arrodeando elas.  E acho que ouvi também uma voz de uma índia Shipibo, lá das Amazônia peruana.  Estiveram me assobiando suas coisas durante todo o tempo desse texto.  Acho que espantando o Nada  pra longe um pouco. Pelo menos um pouco.
         Daí saiu esse tanto de palavra.

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