quinta-feira, 16 de junho de 2016






Esses dias andei dando umas voltas pela Argentina. Fui conhecer os Varones Antipatriarcales de Cordoba, fui numa marcha contra o feminicidio por lá e em umas oficinas de educação popular sobre o tema. Foi muito bom. Várias coisas. Várias. Mas to matutano ainda, depois escrevo. Por hora, traduzi o texto do Maurício, um dos mano que toca o Coletivo por lá. O texto é bom, dá uma boa idéia geral. Os cara são muito legal. Lê aí, firmeza total. Os homens ainda querem ser cabroncitos. Pero ya no no son todos.

Coletivo de Varones antipatriarcales de Cordoba


Tentamos entender que o patriarcado não é uma palavra, uma definição, uma categoria. É uma forma de organização que  todxs sustentamos diariamente, queiramos ou não. O patriarcado está aqui e nos atravessa em todos âmbitos onde nos desenvolvemos. Somos reprodutores desse sistema, seu cúmplices.

“É claro que são todos uns viados que se juntam pra ficar se pegando”.  Essa foi a definição que uma vez escutei sobre o Coletivo. E foi por causa dessa definição que decidi me aproximar e participar. Porque se um grupo de pessoas gera tanto rechaço, preconceito, ódio, ignorância e incômodo devia ser interessante. Devia, pelo menos, para que eu me questionasse, me incomodasse.

Porque?

Porque é fácil ajustar-se a um sistema que  ordena tudo e que ensina a não questionar, a não dizer nada.
Porque é difícil saber que você faz parte de um sistema que mata, que viola que reprime.
Porque é ainda mais difícil ainda tentar sair desse sistema, ou pelo menos começar a compreendê-lo para desativá-lo.
Porque é difícil começar a viver na carne o que vai aprendendo no caminho da luta antipatriarcal e anticapitalista.
Porque feminismo não e o mesmo que feminazi. Porque o feminino não e oposto de machismo. Porque não é o mesmo um homicídio que um feminicídio. Porque um feminicida não está enfermo, naão esta louco, nem é “um violento” ou um caso isolado.
Porque ainda há muita gente que pensa que a homossexualidade é uma doença ou um desvio. Porque “entender” as mulheres não é o mesmo que deixar de ser machista. Porque ser um  homem “alto astral”  não é o mesmo que deixar de ser machista. Porque lavar os pratos, arrumar as roupas, cozinhar e tirar o lixo não te elimina automaticamente da categoria de “machista”.
           Porque não basta simplesmente dizer que é uma brincadeira ou então chamar alguém de exagerado quando reprimir seu comentário machista, homófobo, racista ou opressor. Porque ainda há muita gente que pensa que o feminismo é coisa de mulheres perturbadas que querem acabar com os homens e que reclama demais porque “já alcançaram a igualdade”.
Porque ainda restam muitas mulheres machistas.
Porque ainda há muita gente que exibe essa dupla moral que faz com que se horrorizem diante de um feminicídio e, por outro, sustentam que “alguma coisa motivou isso que aconteceu”.
Porque se segue justificando a violência e a discriminação cada vez que se fala de “culpa” em vez de responsabilidade. Se segue tratando o violento como um caso extremo, isolado.
                Porque muitos acreditam que um feminicida sai de um repolho, ou surge de geração expontânea: um feminicida é teu filho, teu pai, teu tio, teu avô, teu amante, teu amigo. Uma mulher morta é sua esposa, tua mãe, tua sobrinha, tua amiga. E porisso que o machismo NÃO É algo fora desse mundo. O machismo é uma conduta perfeitamente normal dentro de um sistema opressor.
Porque a maioria de todos nós ainda desconhece muita coisa. E ainda cremos que muitas coisas “sempre foram assim”.
Porque sempre foi necessário fazer algo para frear a violência machista. È importante que nos conheçamos, nos reconheçamos em luta e saibamos contar uns com os outrxs.É preciso armar redes para aprender e compartilhar experiências. Para aprender, sempre para aprender.
 Para isso existe o  coletivo Varones Antipatriarcales de Códoba. Um coletivo que não reivindica o conceito de varón, mas tenta questionar essa categoria, criticá-la, demolí-la.
Um grupo de corpos que tentar lutar contra o patriarcado e contra o capitalismo, sistemas responsáveis por TODAS as mortes de violência de gênero, de Todo  tipo de discriminação e ódio. Tentamos entender eu o patriarcado não e uma palavra, uma definição uma categoria. È uma forma de organização que  todxs sustentamos diariamente, queiramos ou não. O patriarcado está aqui e nos atravessa todos âmbitos em que nos desenvolvemos. Somos reprodutores desse sistema, seu cumplice.
Porisso existe esse coletivo.
                Porisso tantos companheiros tentam todo dia fazer algo. Para isso nós trocamos com outros coletivos, agrupações e partidos. Porisso participamos de oficinas e debates. Porisso lemos, nos juntamos e aprendemos discutindo e acordando. Porisso organizamos um encontro anual que em 2016 será em 13, 4 e 15 de agosto. Convocamos a todxs aquellxs que queiram compartilhar e aprender conosco
Isso é o coletivo de Varones Antipatriarcales. Ou isso não é. Em todo caso, o coletivo e feito por todos  durante todo o tempo. Está sempre em construção e sempre se desconstruindo. E sempre está tentando se implicar diante  desse capitalismo que silencia, que etiqueta, que destrói, que viola e que mata.
Agradecemos por não entender. Te convidamos a tentar entender  juntos.

Escrito por Mauricio Acts Piazza. Membro do Coletivo de Varones Antipatriarcales de  Córdoba- Argentina.


quarta-feira, 1 de junho de 2016

Agua de chocalho

Água de chocalho

Nosso silêncio, nossa dificuldade de dar palavra pra essas violências e pra outras não quer dizer necessariamente uma opção pela brutalidade e pelo privilègio que a brutalidade proporciona. Pode ser um silêncio de quem não consegue se expressar apesar da  revolta com isso. Acho que temos que tomar água de chocalho junto. E começar a falar. Palavra com alma, como dizem os guarani. 


Eu não sei falar espanhol
Não sei ler, não sei escrever. Porque?
Por causa dos patrões.
Eles nos tinham como animais

As meninas não queriam ir trabalhar porque o patrão era mau
Chegou um dia o patrão ordenou que pegassem as mulheres para violar. Pegaram os homens e os velhos e puseram longe para que pudessem violar as mulheres. Não foi só uma que violaram. Violaram todas.  Todas as meninas tiveram que passar em suas mãos.
Mulher anciã zapatista



Esses dias todos, depois do estupro coletivo de uma adolescente no Rio, fiquei encucado com o silêncio dos homens diante do que rolou. Tenho muitos amigos homens que ficaram tão chocados e estarrecido quanto eu. E que são tão contra um mundo autoritário e desigual que leva a esse nível de brutalidade. Então, porque o nosso silêncio?

 Dando uns rolê pela América Latina, uma das coisas que mais vi presente na vida das pessoas é a violência de gênero. E puder ouvir pessoas que militam, que estudam, que tem sua práxis voltada a combater essa violência.   Uma das coisas que aprendi é que a prática do estupro é uma estratégia política de conquista de território. O corpo da mulher é espaço de disputa e afirmação de poder entre os homens em disputa, entre patriarcas. Há uma dimensão geopolítica no corpo das mulher. Submeter e violar as mulheres indígenas é uma forma de afirmar o poder colonial-imperial não somente sobre elas, é também uma estratégia para causar um estado de terror em toda comunidade. Ouvi relatos disso na Amazônia brasileira, na Bahia, São Paulo, Mina Gerais,  no Mato Grosso do Sul, Guatemala, na Colômbia, No México, na Bolívia e no Peru. Isso que eu ouvi. Fora o que eu já li.

Há também violência escabrosas contra os homens com o mesmo objetivo. Outra hora falo disso.  

Nesses entremeios aí que andei, pude conversar e conhecer algumas técnicas de medicina tradicional para  trabalhar esses casos. Experiências muito muito muito interessante. Saberes tradicionais dos pajés ,e xamãs para estabelecer novamente o equilíbrio pessoal e também da comunidade.  Em boa parte dessa pajelança se fala em reestabelecer o tempo espaço que foi perdido, que se quebrou. Em diversas narrativas há uma descrição de que o universo se quebra, se estilhaça a partir de um episódio de violência extrema. As medicinas trabalham buscando reestabelecer o retorno desse tempo espaço, o retorno da alma que muitas vezes se foi da pessoa. Para isso se utilizam elementos tradicionais que simbolizam a natureza, assim como ervas especificas, chás, defumadores, cantos e rezas  que servem para conversar com os espíritos, chama-los, pedir sua ajuda, seu conforto e também combatê-los quando for esse o caso.

A prática planejada de  estupros individuais e coletivos como formas de conquista e controle colonial-imperial tem  diferentes efeitos na comunidade. Um deles: além da violência dos patrões para com seus servos, há uma aumento significativo da violência entre os próprios indígenas. Uma  indígena da Guatemala que trabalha com isso que me explicou. Há uma profunda desestruturação na vida social comunitária e uma de suas principais formas é essa: a violência sexual passa a ser muito mais frequente e utilizada como forma de controle entre gêneros no interior das próprias comunidades.

Ou seja, a violência coletiva contra uma comunidade pode ser a causa  de muitos episódios de violência individual realizada por homens. Os homens passam a praticar muito mais violência (muito mais, a diferença é bem significativa)  após passarem também por experiência de extrema violência contra si e seus próximos.  Eles cometem muito mais violência porque foram violentados. Eles mesmos, seus filhos e as mulheres em seu entorno.

É como se houvesse um trauma  coletivo que se expressasse também dessa forma, tornando os homens mais violentos. Eles passam a reproduzir a violência que viram e sentiram suas comunidades passarem. È como se a comunidade toda passasse a viver fora do tempo e do espaço que se movem e passassem a viver dentro de um labirinto onde foi jogada. O estupro das mulheres (uma das modalidades de violência) é o estupro da comunidade toda e isso continua mesmo após muito tempo da violência vivida. A violência desmedida dos homens com as mulheres faz parte desse estilhaçamento comunitário.

Os índios ensina, suas medicinas: é preciso recuperar o sentido comunitário pra tratar disso. Além do aspecto individual; a violência, o sofrimento e o tratamento delas tem uma dimensão comunitária.

Dai, voltando ao nosso ordinário mundo de hoje, me parece  que o silêncio dos homens que não praticam  e que repudiam essas práticas  tem a ver com isso, uma sociedade toda arraigada nessa violência de 500 anos.  Tem a ver com um silêncio sistematicamente construído e que nós mesmo, homens, reproduzimos e nos vigiamos para que ele continue assim, presente. È um silêncio de quem não consegue falar apesar de discordar e sentir  revolta com isso. Fomos ensinados a não ver. Se ver, fingir que não viu. E se não fingir, ficar quieto, guardar pra si mesmo. E seguimos sem ter palavra para isso. E seguimos sem aprender a dizer.

Viver e testemunhar repetidas violência pode nos fazer repetir as violências com os outros. Pode também nos fazer cair num silêncio, num desligamento insensível. Não é isso que os homens são? Desligados, insensíveis, brutos e essas coisas? Pois é, pensando aqui enquanto escrevo, acho que essa nossa dita “essência” pode ter a ver com isso.

Por perceber isso que, às vezes, acho que  essas coisas estão menos  naturalizadas entre nós homens do que as vezes pode parecer. Nosso silêncio, nossa dificuldade de dar palavra pra essas violências e pra outras não quer dizer necessariamente uma opção pela brutalidade e pelo privilègio que essa brutalidade proporciona. Também pode significar que estamos silenciados porque não conseguimos expressar o que estamos sentindo em relação a essa barbárie toda. Silenciamos porque essa violência também nos atravessa e nos afeta. Talvez silenciemos porque, em algum momento, essa violência nos calou.
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Quando a criança  não fala, tem  índio que põe  uma maraca e umas folha na cuia dágua e dá pro menino tomar. A folha e o chocalho vão lá pra dentro do menino fazer suas coisa. Daí ele fala.  Àgua de chocalho. Ela entra e vai nos cantos que precisa pra desvirar o silêncio. Vai lá dentro do menino fazer suas coisa, daí ele fala. Acho que precisamos fazer isso entre nós, tomar água de chocalho junto. E começar a falar.  Palavra dita sem o medo que dá a violência. Palavras que tecem o universo de novo. Como a palavra das mulheres zapatistas e de outras mulheres índígenas que escutei.  Palavra com alma como dizem os guarani. 


Salve as folha.