Água de chocalho
Nosso silêncio,
nossa dificuldade de dar palavra pra essas violências e pra outras não quer
dizer necessariamente uma opção pela brutalidade e pelo privilègio que a
brutalidade proporciona. Pode ser um silêncio de quem não consegue se expressar
apesar da revolta com isso. Acho que temos que tomar água de chocalho
junto. E começar a falar. Palavra com alma, como dizem os guarani.
Eu não sei falar espanhol
Não sei ler, não sei escrever. Porque?
Por causa dos patrões.
Eles nos tinham como animais
As meninas não queriam ir trabalhar porque
o patrão era mau
Chegou um dia o patrão ordenou que
pegassem as mulheres para violar. Pegaram os homens e os velhos e puseram longe
para que pudessem violar as mulheres. Não foi só uma que violaram. Violaram
todas. Todas as meninas tiveram que passar em suas mãos.
Mulher anciã
zapatista
Esses dias todos, depois do estupro coletivo
de uma adolescente no Rio, fiquei encucado com o silêncio dos homens diante do
que rolou. Tenho muitos amigos homens que ficaram tão chocados e estarrecido
quanto eu. E que são tão contra um mundo autoritário e desigual que leva a esse
nível de brutalidade. Então, porque o nosso silêncio?
Dando
uns rolê pela América Latina, uma das coisas que mais vi presente na vida das
pessoas é a violência de gênero. E puder ouvir pessoas que militam, que
estudam, que tem sua práxis voltada a combater essa violência. Uma das
coisas que aprendi é que a prática do estupro é uma estratégia política de
conquista de território. O corpo da mulher é espaço de disputa e afirmação de
poder entre os homens em disputa, entre patriarcas. Há uma dimensão geopolítica
no corpo das mulher. Submeter e violar as mulheres indígenas é uma forma de
afirmar o poder colonial-imperial não somente sobre elas, é também uma estratégia
para causar um estado de terror em toda comunidade. Ouvi relatos disso na Amazônia
brasileira, na Bahia, São Paulo, Mina Gerais, no Mato Grosso do Sul, Guatemala, na Colômbia,
No México, na Bolívia e no Peru. Isso que eu ouvi. Fora o que eu já li.
Há também violência escabrosas contra os
homens com o mesmo objetivo. Outra hora falo disso.
Nesses entremeios aí que andei, pude conversar
e conhecer algumas técnicas de medicina tradicional para trabalhar esses
casos. Experiências muito muito muito interessante. Saberes tradicionais dos
pajés ,e xamãs para estabelecer novamente o equilíbrio pessoal e também da comunidade.
Em boa parte dessa pajelança se fala em
reestabelecer o tempo espaço que foi perdido, que se quebrou. Em diversas
narrativas há uma descrição de que o universo se quebra, se estilhaça a partir
de um episódio de violência extrema. As medicinas trabalham buscando
reestabelecer o retorno desse tempo espaço, o retorno da alma que muitas vezes
se foi da pessoa. Para isso se utilizam elementos tradicionais que simbolizam a
natureza, assim como ervas especificas, chás, defumadores, cantos e rezas
que servem para conversar com os espíritos, chama-los, pedir sua ajuda,
seu conforto e também combatê-los quando for esse o caso.
A prática planejada de estupros
individuais e coletivos como formas de conquista e controle colonial-imperial
tem diferentes efeitos na comunidade. Um
deles: além da violência dos patrões para com seus servos, há uma aumento
significativo da violência entre os próprios indígenas. Uma indígena da
Guatemala que trabalha com isso que me explicou. Há uma profunda
desestruturação na vida social comunitária e uma de suas principais formas é
essa: a violência sexual passa a ser muito mais frequente e utilizada como
forma de controle entre gêneros no interior das próprias comunidades.
Ou seja, a violência coletiva contra uma
comunidade pode ser a causa de muitos episódios de violência individual
realizada por homens. Os homens passam a praticar muito mais violência (muito
mais, a diferença é bem significativa) após passarem também por
experiência de extrema violência contra si e seus próximos. Eles cometem muito
mais violência porque foram violentados. Eles mesmos, seus filhos e as mulheres
em seu entorno.
É como se houvesse um trauma
coletivo que se expressasse também dessa forma, tornando os homens mais
violentos. Eles passam a reproduzir a violência que viram e sentiram suas
comunidades passarem. È como se a comunidade toda passasse a viver fora do
tempo e do espaço que se movem e passassem a viver dentro de um labirinto onde
foi jogada. O estupro das mulheres (uma das modalidades de violência) é o
estupro da comunidade toda e isso continua mesmo após muito tempo da violência
vivida. A violência desmedida dos homens com as mulheres faz parte desse
estilhaçamento comunitário.
Os índios ensina, suas medicinas: é
preciso recuperar o sentido comunitário pra tratar disso. Além do aspecto individual;
a violência, o sofrimento e o tratamento delas tem uma dimensão comunitária.
Dai, voltando ao nosso ordinário mundo de
hoje, me parece que o silêncio dos
homens que não praticam e que repudiam
essas práticas tem a ver com isso, uma
sociedade toda arraigada nessa violência de 500 anos. Tem a ver com um silêncio sistematicamente
construído e que nós mesmo, homens, reproduzimos e nos vigiamos para que ele
continue assim, presente. È um silêncio de quem não consegue falar apesar de
discordar e sentir revolta com isso. Fomos ensinados a não ver. Se ver,
fingir que não viu. E se não fingir, ficar quieto, guardar pra si mesmo. E
seguimos sem ter palavra para isso. E seguimos sem aprender a dizer.
Viver e testemunhar repetidas violência
pode nos fazer repetir as violências com os outros. Pode também nos fazer cair num
silêncio, num desligamento insensível. Não é isso que os homens são? Desligados,
insensíveis, brutos e essas coisas? Pois é, pensando aqui enquanto escrevo,
acho que essa nossa dita “essência” pode ter a ver com isso.
Por perceber isso que, às vezes, acho
que essas coisas estão menos naturalizadas entre nós homens do que
as vezes pode parecer. Nosso silêncio, nossa dificuldade de dar palavra pra
essas violências e pra outras não quer dizer necessariamente uma opção pela brutalidade
e pelo privilègio que essa brutalidade proporciona. Também pode significar que estamos
silenciados porque não conseguimos expressar o que estamos sentindo em relação
a essa barbárie toda. Silenciamos porque essa violência também nos atravessa e
nos afeta. Talvez silenciemos porque, em algum momento, essa violência nos
calou.
.
Quando a criança não fala, tem
índio que põe uma maraca e umas folha na cuia dágua e dá pro menino
tomar. A folha e o chocalho vão lá pra dentro do menino fazer suas coisa. Daí
ele fala. Àgua de chocalho. Ela entra e vai nos cantos que precisa pra
desvirar o silêncio. Vai lá dentro do menino fazer suas coisa, daí ele fala. Acho
que precisamos fazer isso entre nós, tomar água de chocalho junto. E começar a
falar. Palavra dita sem o medo que dá a
violência. Palavras que tecem o universo de novo. Como a palavra das mulheres
zapatistas e de outras mulheres índígenas que escutei. Palavra com alma como dizem os guarani.
Salve as folha.
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