quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Olhares
Nessa época alguém falou do grupo e ele resolveu colar lá. Começaram o encontro fazendo um exercício de se olhar, de trocar olhares. Suas lembranças do encontro terminam ali. Disse que isso foi tão perturbador que nem lembra mais do que aconteceu. Me disse que ficou semanas perturbado com aquilo.

Já faz mais de um mês que estive na Argentina dando um rolê por lá. Aproveitei que tinha que ir prum compromisso de trabalho e resolvi passar por Córdoba e conhecer os Varones Antipatriarcales de lá, grupo de homens que se reúne desde 2008 para realizar práticas e debates sobre o lugar do patriarcado na vida dos homens, na vida dos varones. Daí voltei e logo tive que sair pra outra viagem e não tive como  parar pra escrever um pouco sobre isso. Só estou conseguindo agora.
Encontrei com o povo dos Varones algumas vezes e em diferentes situações. A primeira estava em uma grande manifestação de caráter nacional chamada Ni uma a menos, uma marcha de protesto contra o feminicídio que rola em toda a Argentina no dia. Logo nesse dia já me assustei por conta da grande presença de homens na manifestação. Fração importante do total de gente por lá. Visível, marcante, muitos deles vestido de mulher, com batons e maquiagens gritantes, lingeries e perucas. Muitos carregando cartazes com dizeres feministas contra a opressão de gênero e o patriarcado, a favor da legalização do aborto. Dias depois, batendo papo com o povo do Varones me disseram que são extremamente heterogêneos e  com muitas e muitas discordâncias internas. Há porém um consenso irrestrito entre eles no que diz respeito à questão da legalização do aborto e de outros símbolos da luta  feminista. Sempre se mobilizam em defesa dessas bandeiras. Sobre isso não há discordância. Tinha até uns quatro loco lá que estavam carregando uma grande faixa com dizeres sobre o fim da violência contra as mulheres.  Quatro homens de lingerie e maquiagem carregando um cartaz contra violência de gênero em uma manifestação contra o feminicídio. Sempre vou aqui na marcha e em ações que as feministas organizam em São Paulo e não lembro de ter visto algo assim.  Foi nesse dia que conheci Juan, do Varones lá de Córdoba. Encontrei com ele no outro dia, no xerox do Maurício, outra figura que organiza o grupo por lá.
                 Logo que entrei no xerox, me chamou atenção um quadro logo encima da máquina principal do espaço. Era uma pintura abstrata extremamente expressiva, cores vivas e de grande intensidade afetiva. Uma hora lá perguntei e ele me falou que era de uma artista plástica conhecida em Córdoba. Começou a pintar somente com 56 anos após a morte do marido. Antes, pelo que contou  Maurício, vivia uma vida de “pareja” que não permitia essa atividade. Hoje virou referência nas artes plásticas de Córdoba. Tem mais de oitenta anos e ainda é extremamente ativa. Daí que ficamos lá tomando uma cerveja, comendo pizza e papeando. Nesse dia e depois em outro. Falamos de um tanto de coisa relacionada ao grupo e ao patriarcado: sua história, objetivos políticos , quem são os membros, como funciona o cotidiano, qual as principais questões que aparecem e como anda tudo no mundo. Enfim, conversamos um monte. Puta experiência interessante viu..
                Um deles resolveu contar da primeira vez que foi ao grupo. Já tinha meses que tinha entrado em tamanha crise de ódio e ciúmes da companheira por conta desse lance de monogamia que tava detonando geral a própria vida, a dela e de mais um tanto de amigo, parente em volta e tal. Tava causando geral. Falou pra mim, “Bruno, fora violência física contra ela eu já tinha feito todo tipo de asneira que você pode imaginar. Escândalo em público, via net, jogado as coisa fora, esperneado, insultado. Tava numa situação que quando me dei conta, minha vida e a de muitos estava sendo totalmente prejudicada por essa minha loucura”  Nessa época alguém falou do grupo e ele resolveu colar lá. Conta que chegou lá achando que ia falar de sua experiência, outros também fariam isso e assim as coisas caminhariam. Se enganou. Começaram o encontro fazendo um exercício de se olhar, de trocar olhares entre homens porque nós não fazemos isso. Suas lembranças do encontro terminam ali. Disse que isso foi tão perturbador que nem lembra mais do que aconteceu. Me disse que ficou semanas perturbado com aquilo. Só com o exercício de trocar olhares com outros homens.  Ficou muito mexido. Não parou mais de ir. Me explicaram que uma das coisas que aprenderam com o tempo é sempre fazer exercícios que trabalham a questão corporal: se olhar, se tocar, se permitir sentir e deixar irromper as cargas densas de afeto que o patriarcado vai nos ensinando a sentir. Deixar a brutalidade vir a tona e o carinho e sei lá que milhares de reações sentimentos desejos. E, aos poucos, ir deixando a vida monossilábica do corpo embrutecido pelo machismo
                 E daí teve um que também foi me contar porque procurou o grupo. Como ele é gay, pensei comigo na minha monossilábica imaginação “ah deve ter ido por conta da repressão à sua homossexualidade, de como foi foda durante toda a vida, situações difíceis, não aceitação, humilhaçao e etc.” Nada disso. Contou que foi até o grupo porque não quer mais ser misógino. Me disse que há uma misoginia aprendida e reproduzida entre os gays que ele acha muito ruim. Acha esse papo de odiar mulher uma babaquice sem fim e como via isso nele, foi até o grupo pra poder sacar melhor esse lance, problematizar e tal. Me disseram que por volta da metade dos Varones é formado por homossexuais. Me surpreendi. De novo.  Eu – tolinho - achava que eram só uns machão arrependido que iam até o grupo. Nada disso. Há muitos homossexuais. E isso também é algo que quebra padrões né. Normalmente, o mundo heteronormativo exclui homossexuais. E o universo LGBT também exclui os hetero. Nos Varones não funciona assim não. Trocam experiências, dilemas e se tocam. Quem tiver medo que se permita sentir. Vontade, raivas e confusões também. Mantem um pacto de solidariedade e confidência. Entendem que é um espaço onde se divide experiências entre homens que não se consegue em outros lugares. E também por isso entendem que deve ser um espaço só de homens.
                Quando perguntei de algum traço mais geral dos homens que procuram o grupo me falaram que é comum homens que trabalham com mulheres em alguma situação de alta vulnerabilidade procurarem o grupo. Em Córdoba por exemplo, o grupo começou  pela iniciativa de dois sociólogos  que trabalhavam com trabalhadoras do sexo (eles utilizam esse termo). Também disseram que e um grupo formado majoriatariamente por pessoas que se identificam dentro do espectro político da esquerda. Mas é nesse terreno que eles mais tem divergências. São muitas. Brincando, um deles falou que não aguenta mais gente que faz ioga e “essas coisas”. Outro aproveitou e disse que não aguenta mais gente que acha que o problema do machismo é privado, gente que não se sente bem falando mal do patriarcado, que são contra “bandeiras” e que dizem que não precisam ser “anti” alguma coisa pra precisar “ser”. Riem e debocham, mas deixam claro que há uma tensão constante no grupo quando o tema é esse. Mas entendem que essa diferença deve ser mantida. “È uma constante construção e reconstrução o tempo todo, essa é uma das coisas que nos caracteriza. É um grupo muito inquieto. Esses debates não acabam nunca.” Me explicaram que o nome do grupo é um eterno tema de discussões, seja o Varones, seja o antipatriarcales. É uma questão que vive em aberto.
                De minha parte, falei pra eles da Primavera feminista daqui, da barbárie do estupro coletivo, e todo esse contexto no Brasil. Contei também porque eu  resolvi ir atrás dessa história do machismo mais a fundo, que tinha sido por causa de uma experiência com o povo Krenak, da violência contra esse povo indígena que a ditadura brasileira operou. Ficaram surpresos. Disse que um grupo como o deles por aqui seria bom, que talvez as coisas se desdobrem pra isso em alguma hora. Falei de coisas que pensava e sentia. Pelos olhares e comentários, senti que me entendiam. Sei que falei muitas coisas que eles sentem e lidam no cotidiano no grupo. Olhares e palavras me disseram isso Me senti acolhido.
Voltei pro Brasil e durante alguns dias fiquei matutano e sentindo essas coisas todas ai que andei vendo em Cordoba. Teve também um dia lá de oficina tocada por umas mulheres e um rapaz do grupo dos Varones que foi muito bom também. Muita poesia, vivência corporal e debate. Muito bom.  Mas daí voltei e percebi que o que mais tinha ficado presente pra mim, meio como uma síntese de tudo, foi a palavra carinho. Fiquei impactado de como os Varones foram carinhosos comigo. Pela lei geral do patriarcado, homem  ser carinhoso com outro homem é proibido. Talvez com filho (se for pequeninho melhor). Talvez com pai. Talvez com irmão e melhores amigos. Um beijo. Um abraço mais forte. Um olhar. Mas em geral pára por aí. Pouco né. Eu acho. Há muito pouco carinho entre homens. Pouco cuidado, acolhimento, tudo isso que dizem que a gente deve ter da nossa mãe.  Tudo isso que as mulheres são ensinadas desde cedo a nos dar de maneira irrestrita. E que nós nos achamos no direito de cobrar delas (da nossas mãe principalmente) e sair de si se não recebemos. Ficamos totalmente transtornados, cachorro loco total. Tosquice emocional né. Assim caminha o patriarcado.

                Di que tõ até agora pensando  nisso do carinho. E do nosso medo dele, do medo de nossos desejos, de pesadelos que nos inculcam, que nos enfiam diariamente. De como vamos nos embrutecendo. Mas acho que isso é papo pra outro texto. Queria nesse pontuar essas coisas que me chamaram atenção. Contar um pouco.  Dia 13, 14 e 15 de agosto vai ter o II Encuentro Latinoamericano de Varones Antipatriarcales em Córdoba. Queria muito ir. Estão esperando por volta de 200 homens. Imagino que deva ser perturbador. Pena que não vou estar lá viu. Mas já estou tentando combinar com um amigo ou dois de se encontrar em algum desses dia pra fazer um brinde a los hermanos. Vou propor uma sopinha.  Provavelmente serei  motivo de piada por isso. Comida mais de vovó. Mas vou insistir. Minha vó sabia das coisas. Ela morreu quando eu era bem novo. Sua sopa é a lembrança mais forte dela que tenho. É a lembrança mais viva que tenho do seu carinho.