quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Olhares
Nessa época alguém falou do grupo e ele resolveu colar lá. Começaram o encontro fazendo um exercício de se olhar, de trocar olhares. Suas lembranças do encontro terminam ali. Disse que isso foi tão perturbador que nem lembra mais do que aconteceu. Me disse que ficou semanas perturbado com aquilo.

Já faz mais de um mês que estive na Argentina dando um rolê por lá. Aproveitei que tinha que ir prum compromisso de trabalho e resolvi passar por Córdoba e conhecer os Varones Antipatriarcales de lá, grupo de homens que se reúne desde 2008 para realizar práticas e debates sobre o lugar do patriarcado na vida dos homens, na vida dos varones. Daí voltei e logo tive que sair pra outra viagem e não tive como  parar pra escrever um pouco sobre isso. Só estou conseguindo agora.
Encontrei com o povo dos Varones algumas vezes e em diferentes situações. A primeira estava em uma grande manifestação de caráter nacional chamada Ni uma a menos, uma marcha de protesto contra o feminicídio que rola em toda a Argentina no dia. Logo nesse dia já me assustei por conta da grande presença de homens na manifestação. Fração importante do total de gente por lá. Visível, marcante, muitos deles vestido de mulher, com batons e maquiagens gritantes, lingeries e perucas. Muitos carregando cartazes com dizeres feministas contra a opressão de gênero e o patriarcado, a favor da legalização do aborto. Dias depois, batendo papo com o povo do Varones me disseram que são extremamente heterogêneos e  com muitas e muitas discordâncias internas. Há porém um consenso irrestrito entre eles no que diz respeito à questão da legalização do aborto e de outros símbolos da luta  feminista. Sempre se mobilizam em defesa dessas bandeiras. Sobre isso não há discordância. Tinha até uns quatro loco lá que estavam carregando uma grande faixa com dizeres sobre o fim da violência contra as mulheres.  Quatro homens de lingerie e maquiagem carregando um cartaz contra violência de gênero em uma manifestação contra o feminicídio. Sempre vou aqui na marcha e em ações que as feministas organizam em São Paulo e não lembro de ter visto algo assim.  Foi nesse dia que conheci Juan, do Varones lá de Córdoba. Encontrei com ele no outro dia, no xerox do Maurício, outra figura que organiza o grupo por lá.
                 Logo que entrei no xerox, me chamou atenção um quadro logo encima da máquina principal do espaço. Era uma pintura abstrata extremamente expressiva, cores vivas e de grande intensidade afetiva. Uma hora lá perguntei e ele me falou que era de uma artista plástica conhecida em Córdoba. Começou a pintar somente com 56 anos após a morte do marido. Antes, pelo que contou  Maurício, vivia uma vida de “pareja” que não permitia essa atividade. Hoje virou referência nas artes plásticas de Córdoba. Tem mais de oitenta anos e ainda é extremamente ativa. Daí que ficamos lá tomando uma cerveja, comendo pizza e papeando. Nesse dia e depois em outro. Falamos de um tanto de coisa relacionada ao grupo e ao patriarcado: sua história, objetivos políticos , quem são os membros, como funciona o cotidiano, qual as principais questões que aparecem e como anda tudo no mundo. Enfim, conversamos um monte. Puta experiência interessante viu..
                Um deles resolveu contar da primeira vez que foi ao grupo. Já tinha meses que tinha entrado em tamanha crise de ódio e ciúmes da companheira por conta desse lance de monogamia que tava detonando geral a própria vida, a dela e de mais um tanto de amigo, parente em volta e tal. Tava causando geral. Falou pra mim, “Bruno, fora violência física contra ela eu já tinha feito todo tipo de asneira que você pode imaginar. Escândalo em público, via net, jogado as coisa fora, esperneado, insultado. Tava numa situação que quando me dei conta, minha vida e a de muitos estava sendo totalmente prejudicada por essa minha loucura”  Nessa época alguém falou do grupo e ele resolveu colar lá. Conta que chegou lá achando que ia falar de sua experiência, outros também fariam isso e assim as coisas caminhariam. Se enganou. Começaram o encontro fazendo um exercício de se olhar, de trocar olhares entre homens porque nós não fazemos isso. Suas lembranças do encontro terminam ali. Disse que isso foi tão perturbador que nem lembra mais do que aconteceu. Me disse que ficou semanas perturbado com aquilo. Só com o exercício de trocar olhares com outros homens.  Ficou muito mexido. Não parou mais de ir. Me explicaram que uma das coisas que aprenderam com o tempo é sempre fazer exercícios que trabalham a questão corporal: se olhar, se tocar, se permitir sentir e deixar irromper as cargas densas de afeto que o patriarcado vai nos ensinando a sentir. Deixar a brutalidade vir a tona e o carinho e sei lá que milhares de reações sentimentos desejos. E, aos poucos, ir deixando a vida monossilábica do corpo embrutecido pelo machismo
                 E daí teve um que também foi me contar porque procurou o grupo. Como ele é gay, pensei comigo na minha monossilábica imaginação “ah deve ter ido por conta da repressão à sua homossexualidade, de como foi foda durante toda a vida, situações difíceis, não aceitação, humilhaçao e etc.” Nada disso. Contou que foi até o grupo porque não quer mais ser misógino. Me disse que há uma misoginia aprendida e reproduzida entre os gays que ele acha muito ruim. Acha esse papo de odiar mulher uma babaquice sem fim e como via isso nele, foi até o grupo pra poder sacar melhor esse lance, problematizar e tal. Me disseram que por volta da metade dos Varones é formado por homossexuais. Me surpreendi. De novo.  Eu – tolinho - achava que eram só uns machão arrependido que iam até o grupo. Nada disso. Há muitos homossexuais. E isso também é algo que quebra padrões né. Normalmente, o mundo heteronormativo exclui homossexuais. E o universo LGBT também exclui os hetero. Nos Varones não funciona assim não. Trocam experiências, dilemas e se tocam. Quem tiver medo que se permita sentir. Vontade, raivas e confusões também. Mantem um pacto de solidariedade e confidência. Entendem que é um espaço onde se divide experiências entre homens que não se consegue em outros lugares. E também por isso entendem que deve ser um espaço só de homens.
                Quando perguntei de algum traço mais geral dos homens que procuram o grupo me falaram que é comum homens que trabalham com mulheres em alguma situação de alta vulnerabilidade procurarem o grupo. Em Córdoba por exemplo, o grupo começou  pela iniciativa de dois sociólogos  que trabalhavam com trabalhadoras do sexo (eles utilizam esse termo). Também disseram que e um grupo formado majoriatariamente por pessoas que se identificam dentro do espectro político da esquerda. Mas é nesse terreno que eles mais tem divergências. São muitas. Brincando, um deles falou que não aguenta mais gente que faz ioga e “essas coisas”. Outro aproveitou e disse que não aguenta mais gente que acha que o problema do machismo é privado, gente que não se sente bem falando mal do patriarcado, que são contra “bandeiras” e que dizem que não precisam ser “anti” alguma coisa pra precisar “ser”. Riem e debocham, mas deixam claro que há uma tensão constante no grupo quando o tema é esse. Mas entendem que essa diferença deve ser mantida. “È uma constante construção e reconstrução o tempo todo, essa é uma das coisas que nos caracteriza. É um grupo muito inquieto. Esses debates não acabam nunca.” Me explicaram que o nome do grupo é um eterno tema de discussões, seja o Varones, seja o antipatriarcales. É uma questão que vive em aberto.
                De minha parte, falei pra eles da Primavera feminista daqui, da barbárie do estupro coletivo, e todo esse contexto no Brasil. Contei também porque eu  resolvi ir atrás dessa história do machismo mais a fundo, que tinha sido por causa de uma experiência com o povo Krenak, da violência contra esse povo indígena que a ditadura brasileira operou. Ficaram surpresos. Disse que um grupo como o deles por aqui seria bom, que talvez as coisas se desdobrem pra isso em alguma hora. Falei de coisas que pensava e sentia. Pelos olhares e comentários, senti que me entendiam. Sei que falei muitas coisas que eles sentem e lidam no cotidiano no grupo. Olhares e palavras me disseram isso Me senti acolhido.
Voltei pro Brasil e durante alguns dias fiquei matutano e sentindo essas coisas todas ai que andei vendo em Cordoba. Teve também um dia lá de oficina tocada por umas mulheres e um rapaz do grupo dos Varones que foi muito bom também. Muita poesia, vivência corporal e debate. Muito bom.  Mas daí voltei e percebi que o que mais tinha ficado presente pra mim, meio como uma síntese de tudo, foi a palavra carinho. Fiquei impactado de como os Varones foram carinhosos comigo. Pela lei geral do patriarcado, homem  ser carinhoso com outro homem é proibido. Talvez com filho (se for pequeninho melhor). Talvez com pai. Talvez com irmão e melhores amigos. Um beijo. Um abraço mais forte. Um olhar. Mas em geral pára por aí. Pouco né. Eu acho. Há muito pouco carinho entre homens. Pouco cuidado, acolhimento, tudo isso que dizem que a gente deve ter da nossa mãe.  Tudo isso que as mulheres são ensinadas desde cedo a nos dar de maneira irrestrita. E que nós nos achamos no direito de cobrar delas (da nossas mãe principalmente) e sair de si se não recebemos. Ficamos totalmente transtornados, cachorro loco total. Tosquice emocional né. Assim caminha o patriarcado.

                Di que tõ até agora pensando  nisso do carinho. E do nosso medo dele, do medo de nossos desejos, de pesadelos que nos inculcam, que nos enfiam diariamente. De como vamos nos embrutecendo. Mas acho que isso é papo pra outro texto. Queria nesse pontuar essas coisas que me chamaram atenção. Contar um pouco.  Dia 13, 14 e 15 de agosto vai ter o II Encuentro Latinoamericano de Varones Antipatriarcales em Córdoba. Queria muito ir. Estão esperando por volta de 200 homens. Imagino que deva ser perturbador. Pena que não vou estar lá viu. Mas já estou tentando combinar com um amigo ou dois de se encontrar em algum desses dia pra fazer um brinde a los hermanos. Vou propor uma sopinha.  Provavelmente serei  motivo de piada por isso. Comida mais de vovó. Mas vou insistir. Minha vó sabia das coisas. Ela morreu quando eu era bem novo. Sua sopa é a lembrança mais forte dela que tenho. É a lembrança mais viva que tenho do seu carinho.

quinta-feira, 16 de junho de 2016






Esses dias andei dando umas voltas pela Argentina. Fui conhecer os Varones Antipatriarcales de Cordoba, fui numa marcha contra o feminicidio por lá e em umas oficinas de educação popular sobre o tema. Foi muito bom. Várias coisas. Várias. Mas to matutano ainda, depois escrevo. Por hora, traduzi o texto do Maurício, um dos mano que toca o Coletivo por lá. O texto é bom, dá uma boa idéia geral. Os cara são muito legal. Lê aí, firmeza total. Os homens ainda querem ser cabroncitos. Pero ya no no son todos.

Coletivo de Varones antipatriarcales de Cordoba


Tentamos entender que o patriarcado não é uma palavra, uma definição, uma categoria. É uma forma de organização que  todxs sustentamos diariamente, queiramos ou não. O patriarcado está aqui e nos atravessa em todos âmbitos onde nos desenvolvemos. Somos reprodutores desse sistema, seu cúmplices.

“É claro que são todos uns viados que se juntam pra ficar se pegando”.  Essa foi a definição que uma vez escutei sobre o Coletivo. E foi por causa dessa definição que decidi me aproximar e participar. Porque se um grupo de pessoas gera tanto rechaço, preconceito, ódio, ignorância e incômodo devia ser interessante. Devia, pelo menos, para que eu me questionasse, me incomodasse.

Porque?

Porque é fácil ajustar-se a um sistema que  ordena tudo e que ensina a não questionar, a não dizer nada.
Porque é difícil saber que você faz parte de um sistema que mata, que viola que reprime.
Porque é ainda mais difícil ainda tentar sair desse sistema, ou pelo menos começar a compreendê-lo para desativá-lo.
Porque é difícil começar a viver na carne o que vai aprendendo no caminho da luta antipatriarcal e anticapitalista.
Porque feminismo não e o mesmo que feminazi. Porque o feminino não e oposto de machismo. Porque não é o mesmo um homicídio que um feminicídio. Porque um feminicida não está enfermo, naão esta louco, nem é “um violento” ou um caso isolado.
Porque ainda há muita gente que pensa que a homossexualidade é uma doença ou um desvio. Porque “entender” as mulheres não é o mesmo que deixar de ser machista. Porque ser um  homem “alto astral”  não é o mesmo que deixar de ser machista. Porque lavar os pratos, arrumar as roupas, cozinhar e tirar o lixo não te elimina automaticamente da categoria de “machista”.
           Porque não basta simplesmente dizer que é uma brincadeira ou então chamar alguém de exagerado quando reprimir seu comentário machista, homófobo, racista ou opressor. Porque ainda há muita gente que pensa que o feminismo é coisa de mulheres perturbadas que querem acabar com os homens e que reclama demais porque “já alcançaram a igualdade”.
Porque ainda restam muitas mulheres machistas.
Porque ainda há muita gente que exibe essa dupla moral que faz com que se horrorizem diante de um feminicídio e, por outro, sustentam que “alguma coisa motivou isso que aconteceu”.
Porque se segue justificando a violência e a discriminação cada vez que se fala de “culpa” em vez de responsabilidade. Se segue tratando o violento como um caso extremo, isolado.
                Porque muitos acreditam que um feminicida sai de um repolho, ou surge de geração expontânea: um feminicida é teu filho, teu pai, teu tio, teu avô, teu amante, teu amigo. Uma mulher morta é sua esposa, tua mãe, tua sobrinha, tua amiga. E porisso que o machismo NÃO É algo fora desse mundo. O machismo é uma conduta perfeitamente normal dentro de um sistema opressor.
Porque a maioria de todos nós ainda desconhece muita coisa. E ainda cremos que muitas coisas “sempre foram assim”.
Porque sempre foi necessário fazer algo para frear a violência machista. È importante que nos conheçamos, nos reconheçamos em luta e saibamos contar uns com os outrxs.É preciso armar redes para aprender e compartilhar experiências. Para aprender, sempre para aprender.
 Para isso existe o  coletivo Varones Antipatriarcales de Códoba. Um coletivo que não reivindica o conceito de varón, mas tenta questionar essa categoria, criticá-la, demolí-la.
Um grupo de corpos que tentar lutar contra o patriarcado e contra o capitalismo, sistemas responsáveis por TODAS as mortes de violência de gênero, de Todo  tipo de discriminação e ódio. Tentamos entender eu o patriarcado não e uma palavra, uma definição uma categoria. È uma forma de organização que  todxs sustentamos diariamente, queiramos ou não. O patriarcado está aqui e nos atravessa todos âmbitos em que nos desenvolvemos. Somos reprodutores desse sistema, seu cumplice.
Porisso existe esse coletivo.
                Porisso tantos companheiros tentam todo dia fazer algo. Para isso nós trocamos com outros coletivos, agrupações e partidos. Porisso participamos de oficinas e debates. Porisso lemos, nos juntamos e aprendemos discutindo e acordando. Porisso organizamos um encontro anual que em 2016 será em 13, 4 e 15 de agosto. Convocamos a todxs aquellxs que queiram compartilhar e aprender conosco
Isso é o coletivo de Varones Antipatriarcales. Ou isso não é. Em todo caso, o coletivo e feito por todos  durante todo o tempo. Está sempre em construção e sempre se desconstruindo. E sempre está tentando se implicar diante  desse capitalismo que silencia, que etiqueta, que destrói, que viola e que mata.
Agradecemos por não entender. Te convidamos a tentar entender  juntos.

Escrito por Mauricio Acts Piazza. Membro do Coletivo de Varones Antipatriarcales de  Córdoba- Argentina.


quarta-feira, 1 de junho de 2016

Agua de chocalho

Água de chocalho

Nosso silêncio, nossa dificuldade de dar palavra pra essas violências e pra outras não quer dizer necessariamente uma opção pela brutalidade e pelo privilègio que a brutalidade proporciona. Pode ser um silêncio de quem não consegue se expressar apesar da  revolta com isso. Acho que temos que tomar água de chocalho junto. E começar a falar. Palavra com alma, como dizem os guarani. 


Eu não sei falar espanhol
Não sei ler, não sei escrever. Porque?
Por causa dos patrões.
Eles nos tinham como animais

As meninas não queriam ir trabalhar porque o patrão era mau
Chegou um dia o patrão ordenou que pegassem as mulheres para violar. Pegaram os homens e os velhos e puseram longe para que pudessem violar as mulheres. Não foi só uma que violaram. Violaram todas.  Todas as meninas tiveram que passar em suas mãos.
Mulher anciã zapatista



Esses dias todos, depois do estupro coletivo de uma adolescente no Rio, fiquei encucado com o silêncio dos homens diante do que rolou. Tenho muitos amigos homens que ficaram tão chocados e estarrecido quanto eu. E que são tão contra um mundo autoritário e desigual que leva a esse nível de brutalidade. Então, porque o nosso silêncio?

 Dando uns rolê pela América Latina, uma das coisas que mais vi presente na vida das pessoas é a violência de gênero. E puder ouvir pessoas que militam, que estudam, que tem sua práxis voltada a combater essa violência.   Uma das coisas que aprendi é que a prática do estupro é uma estratégia política de conquista de território. O corpo da mulher é espaço de disputa e afirmação de poder entre os homens em disputa, entre patriarcas. Há uma dimensão geopolítica no corpo das mulher. Submeter e violar as mulheres indígenas é uma forma de afirmar o poder colonial-imperial não somente sobre elas, é também uma estratégia para causar um estado de terror em toda comunidade. Ouvi relatos disso na Amazônia brasileira, na Bahia, São Paulo, Mina Gerais,  no Mato Grosso do Sul, Guatemala, na Colômbia, No México, na Bolívia e no Peru. Isso que eu ouvi. Fora o que eu já li.

Há também violência escabrosas contra os homens com o mesmo objetivo. Outra hora falo disso.  

Nesses entremeios aí que andei, pude conversar e conhecer algumas técnicas de medicina tradicional para  trabalhar esses casos. Experiências muito muito muito interessante. Saberes tradicionais dos pajés ,e xamãs para estabelecer novamente o equilíbrio pessoal e também da comunidade.  Em boa parte dessa pajelança se fala em reestabelecer o tempo espaço que foi perdido, que se quebrou. Em diversas narrativas há uma descrição de que o universo se quebra, se estilhaça a partir de um episódio de violência extrema. As medicinas trabalham buscando reestabelecer o retorno desse tempo espaço, o retorno da alma que muitas vezes se foi da pessoa. Para isso se utilizam elementos tradicionais que simbolizam a natureza, assim como ervas especificas, chás, defumadores, cantos e rezas  que servem para conversar com os espíritos, chama-los, pedir sua ajuda, seu conforto e também combatê-los quando for esse o caso.

A prática planejada de  estupros individuais e coletivos como formas de conquista e controle colonial-imperial tem  diferentes efeitos na comunidade. Um deles: além da violência dos patrões para com seus servos, há uma aumento significativo da violência entre os próprios indígenas. Uma  indígena da Guatemala que trabalha com isso que me explicou. Há uma profunda desestruturação na vida social comunitária e uma de suas principais formas é essa: a violência sexual passa a ser muito mais frequente e utilizada como forma de controle entre gêneros no interior das próprias comunidades.

Ou seja, a violência coletiva contra uma comunidade pode ser a causa  de muitos episódios de violência individual realizada por homens. Os homens passam a praticar muito mais violência (muito mais, a diferença é bem significativa)  após passarem também por experiência de extrema violência contra si e seus próximos.  Eles cometem muito mais violência porque foram violentados. Eles mesmos, seus filhos e as mulheres em seu entorno.

É como se houvesse um trauma  coletivo que se expressasse também dessa forma, tornando os homens mais violentos. Eles passam a reproduzir a violência que viram e sentiram suas comunidades passarem. È como se a comunidade toda passasse a viver fora do tempo e do espaço que se movem e passassem a viver dentro de um labirinto onde foi jogada. O estupro das mulheres (uma das modalidades de violência) é o estupro da comunidade toda e isso continua mesmo após muito tempo da violência vivida. A violência desmedida dos homens com as mulheres faz parte desse estilhaçamento comunitário.

Os índios ensina, suas medicinas: é preciso recuperar o sentido comunitário pra tratar disso. Além do aspecto individual; a violência, o sofrimento e o tratamento delas tem uma dimensão comunitária.

Dai, voltando ao nosso ordinário mundo de hoje, me parece  que o silêncio dos homens que não praticam  e que repudiam essas práticas  tem a ver com isso, uma sociedade toda arraigada nessa violência de 500 anos.  Tem a ver com um silêncio sistematicamente construído e que nós mesmo, homens, reproduzimos e nos vigiamos para que ele continue assim, presente. È um silêncio de quem não consegue falar apesar de discordar e sentir  revolta com isso. Fomos ensinados a não ver. Se ver, fingir que não viu. E se não fingir, ficar quieto, guardar pra si mesmo. E seguimos sem ter palavra para isso. E seguimos sem aprender a dizer.

Viver e testemunhar repetidas violência pode nos fazer repetir as violências com os outros. Pode também nos fazer cair num silêncio, num desligamento insensível. Não é isso que os homens são? Desligados, insensíveis, brutos e essas coisas? Pois é, pensando aqui enquanto escrevo, acho que essa nossa dita “essência” pode ter a ver com isso.

Por perceber isso que, às vezes, acho que  essas coisas estão menos  naturalizadas entre nós homens do que as vezes pode parecer. Nosso silêncio, nossa dificuldade de dar palavra pra essas violências e pra outras não quer dizer necessariamente uma opção pela brutalidade e pelo privilègio que essa brutalidade proporciona. Também pode significar que estamos silenciados porque não conseguimos expressar o que estamos sentindo em relação a essa barbárie toda. Silenciamos porque essa violência também nos atravessa e nos afeta. Talvez silenciemos porque, em algum momento, essa violência nos calou.
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Quando a criança  não fala, tem  índio que põe  uma maraca e umas folha na cuia dágua e dá pro menino tomar. A folha e o chocalho vão lá pra dentro do menino fazer suas coisa. Daí ele fala.  Àgua de chocalho. Ela entra e vai nos cantos que precisa pra desvirar o silêncio. Vai lá dentro do menino fazer suas coisa, daí ele fala. Acho que precisamos fazer isso entre nós, tomar água de chocalho junto. E começar a falar.  Palavra dita sem o medo que dá a violência. Palavras que tecem o universo de novo. Como a palavra das mulheres zapatistas e de outras mulheres índígenas que escutei.  Palavra com alma como dizem os guarani. 


Salve as folha.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

                                                               
                                                               A faixa

Há na sociedade patriarcal uma perversidade primeira na nossa sociabilidade de “meninos” com as “meninas”. Somos ensinados, logo no comecinho , desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao odiá-las, desrespeitá-las e diminuí-lasE saímos repetindo isso depois ao longo da vida, sem nem nos darmos conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito de alguma delas.

Já tem um tempo que tô querendo escrever aqui sobre uma dessas coisas que estão na base de formação do ”ser homem” e até agora não consegui. Estou há meses sentindo e reparando nisso e pensando muitas vezes “óia o baguio aqui de novo, precisava escrever disso pra tentar entender melhor”. Acho que não consegui até agora porque é algo que dá vergonha de admitir. E porque dói o coração quando a gente olha sem desviar tanto. Mas esses dias, depois da história do estupro coletivo de uma adolescente no Rio resolvi sentar  e escrever. Queria falar um pouco da misoginia, do ódio que os homens aprendem a sentir das mulheres.
Quando eu era mais menino eu gostava muito de ler Calvin, um quadrinho estadunidense de um moleque e seu tigre de pelúcia, o Haroldo. Sempre gostei muito, devorava os livrinho como se diz. E desde que comecei a querer entender esse lance da misoginia em mim que lembro toda hora de uma tirinha do Calviin. É uma onde ele falando com o Haroldo sobre a Susie, sua colega na escola e do bairro. Nessa tira, Calvin passa  vários quadrinhos dizendo para Haroldo o quanto ele odeia Susie “Ela é chata, eu odeio ela, quero que ela suma, como ela é insuportável, ela é o terror dos terrores e por aí. Daí, na última o Haroldo brinca com ele repetindo: Calvin está apaixonado!, Calvin ama Susie!, vem cá Susie me dar um beijinho! O Calvin lógico, vocês já imaginam, o  desenhista fez uma nuvem saindo trovão e raios da cabeça dele de tanta raiva que ele fica. E fica mais do que evidente que aquela conversa odiosa dele é uma “demonstração “do quanto ele gosta da Susie.
Há na sociedade patriarcal uma perversidade primeira na nossa sociabilidade de “meninos” com as “meninas”. Somos ensinados, logo no comecinho , desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao odiá-las, desrespeitá-las e diminuí-las. É como se o impulso inicial da relação entre menino e meninas, o passo originário fosse esse: negá-las e, imediatamente depois, diminuí-las. E saímos repetindo isso depois ao longo da vida, sem nem nos darmos conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito de alguma delas.
O que eu acho  que me fez tanto lembrar desse quadrinho  foi a sua capacidade de mostrar de forma tão simples e direta um processo tão fundante da nossa experiência social de “ser homem”: odiar e diminuir as mulheres como ponto de partida pras nossas relações com elas. A tal ponto que mesmo as relações de afeto mais solidárias e amorosas não raro se traduzem em  ofensa, raiva e constante diminuição. A gente xinga e machuca pra elogiar, olha a loucura. Lembro de um outro quadrinho, onde o Calvin pendura uma faixa em letras garrafais em uma árvore em frente à casa da Susie: Eu odeio as meninas gosmentas.  Eis aí uma criança menino tentando dizer pra uma criança menina que gosta muito dela: uma triunfante e garrafal ofensa. No patriarcado a experiência da misoginia é muito fundamental e estruturante. É aprendida desde muito cedo e de maneira muito intensa. E não é por outro motivo que ela está tão presente na nossa vida. Seja na forma de violências brutais e estarrecedoras, seja no cotidiano dos pensamentos miúdos e invisíveis e até mesmo nos momentos de maior respeito e compartilhamento com quem queremos perto de nós. Diminuímos pra dizer que gostamos. Vê se pode.
E tem uma expressão dessa história que eu tenho especialmente prestado atenção: Como nós homens falamos mal e diminuímos as mulheres o tempo todo. Já ouço as mina falar disso há muito tempo né, mas lógico que não tinha atentado de verdade pra isso. Demora né, não tem jeito, assim funciona nosso coração de Conan. Essa parada é uma coisa impressionante. Está em todo lugar, em todo ambiente, a todo momento e de inúmeras formas. Está, vou insistir nisso, até naquelas de maior solidariedade e confiança. Aquela que temos com quem gostamos.  Faz parte do discurso masculino nas mais diferente expressões se referir à mulher sempre numa posição de que elas são um problema. Desde o discurso mais obviamente misógino e abjeto - “ela não merecia nem ser estuprada” – passando pelo básico “sabe como é mulher né” e indo  até o mais sincero dos igualitários -  “apoio total a luta das mina, mas elas são foda né, são brava,  não deixam a gente falar nada, estão contra os homens”. Sempre tem um senão pra dizer das mina. A mulher sempre entra atrapalhando a balada, seja ela qual for, da viagem dos sonhos ao cafezinho no trabalho. Mesmo quando é pra elogiar e dizer que ama, que não vive sem elas, que admira e tal parece que a lógica do odeio as meninas gosmentas se faz presente.  Sempre tem um senão, algo que delimita uma diferença indicando que as mulheres nos atrapalham, nos complicam a vida. E - muitos acharão  exagero - acho que se pararmos pra olhar  com cuidado vamos encontrar ali, na raiz desse senão uma vozinha dizendo “eu odeio você”, ”eu quero te matar” e outras coisas desse nível de violência e negação do outro. E isso acontece porque é essa a experiência primeira, a parada que aciona a sociabilidade entre gêneros na sociedade patriarcal. Nós homens devemos sempre odiar e diminuir as mulheres. È assim que o patriarcado  se mantem.
Parece exagero né. Mas olha, sabe como percebi isso? Reparando em mim mesmo. Nos meus incômodos incessantes e numa repetitiva “mania” de diminuir. Sou muito provocativo e tô sempre brincando, tirando onda do outro. Muitas vezes além da medida e de forma desrespeitosa. Mais do que a média provavelmente, se é que isso é coisa que dê pra se tirar alguma média. Então parei pra ver o que tava atrás de minhas constantes provocações com as mina. E cheguei num sentimento de raiva e ódio. Uma negação pura e simples. Sem nenhuma explicação, sem nenhum motivo. Mas tava lá. Um grito bem grande e nítido:  Eu te odeio. Tipo a faixa do Calvin memo. E tava também numa excessiva falta de paciência, no meu nervosismo com tal mania, na escolha da comida, do lugar, do filme, da roupa, do jeito, do pensamento, da forma de ser feminista, de ter opinião, de ter amigos, de sentar de ficar de pé de ter corpo, de ter cheiro de gostar e de desgostar e isso e aquilo e infinitos aquilos que não acabam nunca.
Não estou querendo dizer com isso que a admiração, o companheirismo, as brincadeiras, as provocações, a vida vivida de boa, as besteiras que só são besteiras o silêncio bom e o amor e seus passarinhos todos são uma ilusão ou algo falso.  Não é isso não. O que tô dizendo é que parece que há uma cisma (e cisma significa também separação) que anda sempre com a gente, na cacunda dos nossos afetos e dos nossos passos toda vez que há uma relação com o feminino. Tá junto nas raivas legítimas,  tá junto com a gente sendo escroto e também tá junto quando a gente está aberto, tranquilo e amoroso. Porque é algo muito fundante mesmo, e é também um aprendizado que o mundo patriarcal não para de reforçar. Ta no meio do nosso tutano. Começa no Calvin e não termina mais. Está com a gente nas mais distintas horas feito um grilinho falante dando a linha o tempo todo.
Uma figura importante na minha vida, uma mulher da horíssima, que eu re-encontrei esses dias me disse que eu tava diferente. Tinha um tempo já que a gente não se via. Contei pra ela essas coisas que eu andei matutano nos últimos tempos, essa vontade de tentar entender melhor minha própria masculinidade, a experiência com os Krenak e tudo isso . Ela me falou que me sentiu diferente mesmo. Me disse que eu continuava cheio das machice tosca, mas que eu tava diferente. Mais cuidadoso ela falou. Mais atencioso. Fiquei pensando que talvez tenha a ver com isso.  Apesar do mesmo machistóide de sempre, to mais desconfiado das minhas próprias macharia e isso tá me fazendo mais cuidadoso. Elas já não me passam  assim tão ao natural. E só isso já tá me deixando menos tosco um pouquinho. Identificar esse ódio e aprendido a lidar com ele. Segurar esse ímpeto de sempre detonar a outra pessoa.
Porque é um horror odiar quem você gosta, ama, respeita e quer perto. Num dá né, pelo amor da deusa. E o mesmo com quem você mal conhece. É mulher? Ah, então vou ofender e diminuir. Pára né, pára.

Olha, eu como sei que eu não vou parar de faze tão cedo,  resolvi escrever uma faixa e pus bem na frente do meu ódio. Ele continua lá me atazanando sem  parar,  mas agora tá o tempo todo lendo: Eu acho as meninas muito da hora! Gosmento é seu nariz! Seu babaca!!! Em letras garrafais e bem escritas – até umas luzinha piscando  eu pus -  porque vocês sabem né, se tem uma coisa que o ódio não gosta é ler. Ele morre de medo disso. Babaca.

sábado, 23 de abril de 2016

Desengonçado

E me parece que uma dessas estruturas fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio isso, principalmente para quem já tem um caminho andado  nessas treta de gênero, mas para mim, e arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito invizibilizada.. E porisso se torna muito difícil de sacar e de sentir

Ando por esses tempos, conversando com alguns amigos e colegas homens sobre esse lance de masculinidade. Sobre o que é ser homem, ser formado para ser homem desde menininho, desde bem piquititinho mesmo. De antes de nascer na verdade né... E tenho começado a perceber e ouvir a variedade de experiências que nós temos sobre isso. De como os homens vivem, cada um de seu modo, o processo de se tornar homem.  E de como todo o tempo  estamos sendo  ensinados a cumprir determinado script de ser homem e  como isso vai ganhando traços muitos distintos e heterogêneos de acordo com a vida de cada um, onde nasceu e cresceu, para onde caminhou a vida, sua posição de classe, sua configuração familiar,  racial, sua religião.
E uma coisa que tenho notado é que nessa história existem duas dimensões que caminham juntas. Por um lado, é impressionante a alta diversidade de experiências. Dependendo desse monte de variáveis que falei ai – e muitas outras – o “ser homem” vai se constituindo de maneiras muito distintas entre si. Tem uma porrada de jeito de ser homem e de  ser machista, de conviver e ser formado pelo patriarcado.  Só que por outro lado, apesar dessa extrema diversidade, parecem que tem alguns processos, algumas estruturas dinâmicas que estão sempre presentes, apesar das diferentes formas e colorações que possam tomar. E que talvez  sacar como essas artimanhas estruturais do patriarcado operam seja uma pista de possíveis caminhos alternativos à essa masculinidade que nos é imposta.
E me parece que uma dessas estruturas fundantes do machismo é a violência. Sei que pode parecer meio óbvio isso, principalmente para quem já tem um caminho andado  nessas treta de gênero, mas para mim, e arrisco dizer que para muitos homens, isso não é tão simples de sacar. Porque é como se essa violência entre nós homens não existisse. Uma das coisas que tenho percebido é que a violência existente na formação da masculinidade é muito invizibilizada. E porisso se torna muito difícil de sacar e de sentir. Difícil de nomear, de criar uma narrativa sobre e mais ainda de pensar coletivamente sobre isso. E, portanto, é muito difícil de ter referências que ajudem a compreender isso que nos afeta e está tão presente na formação do “ser homem”.
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 Tem um filme, que eu assisti há um tempão atrás, tava no colégio ainda. É um filme do Kubrick chamado Nascido para matar (Full Metal Jacket, 1987 )e em uma das histórias contadas – são duas – ele explicita de maneira muito didática e crua como a lógica da violência patriarcal opera entre os homens.  É um filme militar que se passa em um  lugar de treinamento de soldados que vão para o Vietnã.
O filme conta a  história de um menino que está servindo ao exército dos EUA. Só que tem um problema: o menino é completamente inadaptado ao esquema militar. Ele está acima do peso, gosta de dormir até tarde e é atrapalhado com o próprio corpo, aquilo que se chama por aí de desengonçado. Não consegue fazer os exercícios, esconde chocolate debaixo do travesseiro, é dorminhoco, enfim,  faz tudo de um jeito considerado muito ruim para os padrões do exército. O resultado dessa inadequação é que sua vida no quartel é uma sequencia de episódios onde ele é sempre humilhado. Muito humilhado. O grande símbolo disso é o sargento do seu batalhão, seu “educador” por excelência.  Logo no começo do filme, o menino passa a ser chamado de “saco de merda” pelo sargento. Outro recurso utilizado por ele é sempre se referir à família do menino, principalmente às mulheres, ofendendo e fazendo referências que remetem à violência sexual contra elas. Fora os castigos físicos que se tornam a regra na vida do menino. E, claro, que essas práticas passam a ser repetidas por todos os soldados do batalhão que vão seguindo o grande sargento educador.  Boa parte do filme é a descrição  desse massacre cotidiano que esse moleque vai passando ininterruptamente.
Só que um dia as coisas começam a mudar. O menino  descobre uma atividade em que ele é muito bom, bem melhor do que os outros. Ele descobre que é um exímio atirador. Ele saber armar, atirar e desmontar uma metralhadora como ninguém mais lá. E, por causa disso, passa a ser respeitado. E  se sentindo importante e reconhecido, ele se aperfeiçoa cada vez mais. Se dedica a aprender a atirar. A montar sua metralhadora. A reconhecer as balas e tudo que tem a ver com esse mundo. O filme tem cenas forte que mostram  ele se dedicando quase obssesivamente ao aprendizado da arma. Fica bem claro como ele descobre o caminho para deixar de ser um saco de merda e se joga de cabeça nisso até  virar um atirador de elite . De saco de merda a atirador de elite do exército dos EUA. Duas imagens radicais, extremas e muito didáticas. O sargento conseguiu seu objetivo. Só que não.
No fim do filme, Kubrick se dedica a demonstrar as sequelas que esse processo de intensa violência trouxe. Como o menino foi totalmente arrebentado nesse processo. Seu corpo muda, seus afetos se transformam, seu olhar se torna outro olhar. Ele se torna uma máquina de matar. E o filme termina quando ele mata o sargento e se mata. Até antes de receber o tiro final, mesmo ameaçado por uma metralhadora, o sargento continua se referindo a ele como saco de merda. Até ser morto. E então ele se mata. A cena toda se passa em um banheiro.   
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                Faz um tempo já que tô querendo escrever sobre esse filme no contexto  de pensar a masculinidade. Porque tenho a impressão que isso que aparece no filme de maneira radicalizada e explícita, acontece de forma menos nítida no cotidiano da vida dos homens em diferentes e inúmeras situações. Desde menininhos somos treinados pela violência a desejar muito estar no topo da pirâmide patriarcal e, ao mesmo tempo, nos mostram como ser inadaptado a isso é sinônimo de ser o pior dos seres. Como isso nos faz sermos feios, defeituosos, burros e tudo mais  que é considerado ruim. Te convencer que você é o pior dos seres – e saco de merda é uma ótima imagem – e te fazer querer escapar disso  se tornando o vencedor entre os vencedores - um atirador de elite - é uma metáfora muito bem feita de como opera a educação da violência para ser homem no patriarcado.
                Só que  nós homens, apesar de sermos moldados por essa lógica  desde muito cedo e irmos cedendo cada vez mais a ela até chegar na nossa idade adulta, não somos só isso. Apesar de sermos muito isso, porque essa parada é realmente muito eficaz, não somos só isso. E isso fica claro quando olhamos para as crianças. A capacidade que a criança tem de escapar desses lugares que a querem colocar é uma boa mostra de como dá pra ser uma outra coisa, que sabemos e podemos ser outra coisa. A treta é que vão insidiosamente nos enfiando guela abaixo  essa série de valores, modos de ser e de sentir – acho que é modo de  não sentir na verdade, de embotar o próprio sentir- que vamos nos transformando nesses seres altamente brutalizados e distantes de si mesmos. Pela educação patriarcal – sua violência-  vamos emudecendo nossas  vozes e sensibilidades que caminham para outros rumos. Caminho triste, o machismo vai tomando conta de todo canto nosso e nos coloca pra gastar toda nossas energias em aprender e ser do jeito que um homem deve ser.
Mas acho que de tanto andar por aí prestando atenção nessas histórias, começo a perceber que nós resistimos a isso. Muitas vezes das formas mais impensadas e esdrúxulas. Muitas vezes com violência e ações aparentemente sem sentido. Poucas vezes com serenidade.  Quase nunca admitindo que temos um problema chamado machismo. E, infelizmente, quase sempre de maneira muito solitária. Mas tenho começado a reconhecer que, de uma forma ou outra, resistimos. Em alguns momentos, muitas vezes misturada com um monte de outras coisas, de forma confusa e sem contorno certo, conseguimos revelar que não nos esgotamos nessa lógica da violência.
Esses dias fiz um exercício corporal ai e,no meio das mil treta sem fim que apareceram, tinha tipo um pontinho, um lugarzinho lá no meio que era diferente. Era azul, verde e tinha um tanto de passarinho. E a sensação que eu fiquei é que ali era um desses lugares distintos da borrasca machista. Reconhecer e entender a lógica do machismo na nossa vida ajuda a reconhecer e começar a entender lugares alternativos a  isso.               Como numa espécie de dupla consciência de nós mesmos e de quem nós somos. Quanto mais conhecemos uma, mais conhecemos a outra.
Era um lugarzinho pequeno e meio confuso ainda, sem forma certa. Meio desengonçado. Mas tinha um tanto de passarinho.
 Achei um bom começo.



sábado, 20 de fevereiro de 2016

                                            Umas florzinha

E o que aconteceu daí foi supreendente. Acho que foi a primeira vez que as respostas que obtive sobre  machismo não me ajudaram. Ao serem consultadas, as mulheres com quem mais falo disso e sempre me estonteiam com suas observações dessa vez me deixaram meio na mesma. Não encontrei  uma resposta delas.  E daí, fiquei matutano sobre isso, do porque dessa vez as respostas  da mulheres não me ajudaram.

As purpurinas mais insistentes ainda se mantem  mesmo após uma semana. Um monte de coisa acontece no carnaval né, muitas rodando em torno das brincadeiras amorosas e eróticas que a santa bagaceira maravilhosa produz nas relações. Mas uma hora acaba né, e a gente volta, o ano efetivamente começa e a vida se retoma. Cheia dos balacobaco ocorridos e que nos farão companhia pelo do  resto ano, mas a vida se retoma. No mundo dos ciclos e dessas engenharias misteriosas aí que o carnaval participa é  assim que o trem funciona.
Daí, que nessas idas e vindas do carnaval e suas inquietações uma amiga  tava me dizendo que as feministas estão chamando de Primavera Feminista essa série de eventos que eclodiram ai em 2015. Aproveitei então essa semaninha de rearrumações para o cotidiano e fiquei revendo  comigo como essa chuva de flores me chegou lá em 2015 e ficou me rondando até o finzinho do carnaval, onde flores também não faltaram. E nessas, lembrei de um  #meuamigosecreto que uma amiga escreveu e que me deixou com uma dessas pergunta que não larga  mais a gente: O que nós homens devemos fazer quando vemos outros caras fazendo umas coisa dessas que as mina nos apontam como escrotice machista? E quando é a gente mesmo? Qual deve ser nosso proceder?
A frase escrita  pela minha amiga foi : Quando eu descobri tudo isso e coloquei a boca no trombone, meu amigo secreto me chamou de “mulherzinha”, achando que isso era ofensa. Todos os amigos dele sabem o quanto ele é perverso com as mulheres e conhecem todas as suas histórias mas continuam respeitando ele porque afinal, ele só tem problemas com “mulheres”.
Olha, foi foda viu. Tô meio azuretado com essa história até agora e sei que não vai passar tão cedo. E o motivo é simples: essa forma de agir que ela descreve serviu direitinho pra mim. Quantas e quantas vezes não vi ou fui o provocador de situações explícitas de machismo - da piadinha “descontraída” à agressão explícita - e me evadi com alguma máxima inconteste  tipo “Isso é problema deles” ou “Sei lá né, cada um cada um, essas treta ai  é com eles” e outras frases prontas do universo masculino. Mesmo com meus parcos recurso afetivos pra lidar com situações como essas, diante desse relato senti o cheiro de minha própria covardia machista Daí, como em outra vezes, na ausência de homens pra falar sobre isso, fui procurar algumas amigas. Fui pedir ajuda. O que que eu faço, me ajuda a pensar? Me ajuda a entender isso que eu to sentindo...
E o que aconteceu daí foi supreendente. Acho que foi a primeira vez que as respostas que obtive sobre  machismo não me ajudaram. Ao serem consultadas, as mulheres com quem mais falo disso e sempre me estonteiam com suas observações dessa vez me deixaram meio na mesma. Não encontrei  uma resposta delas.  E daí fiquei matutano sobre isso, do porque dessa vez as respostas  da mulheres não me ajudaram.
Me parece que essa história rolou porque esse tipo de problema é algo que diz respeito à relação dos homens com os homens, universo relativamente desconhecido das mulheres. É um problema sobre como nós homens afetamos e somos afetados por outros de nós homens a partir  de práticas instituídas especificamente para nós homens. È claro que as mulheres devem contribuir e todo o acúmulo que já foi produzido por elas é absolutamente essencial. Que não paire nenhuma dúvida sobre isso. Sem elas puxando, acho impossível alguma coisa acontecer. Mas esse é um debate onde a participação dos homens é incontornável. Não tem como avançar e construir respostas sem  a nossa participação. Pelo simples fato que é um debate sobre como nós homens nos sentimos. E isso, só nós podemos dizer. E como simplesmente nos recusamos a debater nosso machismo não se produz reflexão nem prática sobre isso. Simples assim.
A relação dos homens entre os homens, como formamos nossa masculinidade, quais suas regras,  qual a violência imposta nesse processo, quais esses privilégios que não abrimos mão, quais vozes estão sempre presentes na nossa cabeça, porque dessa obsessiva idéia de posse, como  compreender essa tristeza que nos acompanha, essa covardia, essa mesquinharia e essa pobreza de recursos afetivos para lidar com a vida. Enfim,qual é e como funciona esse sofisticado  massacre psico-físico-afetivo a que somos impostos pelo patriarcado desde que nascemos. O escrito da minha amiga me ajudou a constatar com mais nitidez como esses processos todos moram no reino do invisível, do não-dito, não-conversado e, talvez o pior, do tido como não-existente. É uma doidera, porque a parada é um mercúrio radioativo pulsando em cada célula da nossa vida, em cada cantinho delas todas – é um presença tóxica, maldita  -   mas a gente não dá pra isso nem o estatuto de coisa que existe. Santa ignorância Batman...
Como diz aí um desses ditado aí: o pior segredo daquele que não presta é convencer a gente de que ele não existe.
Daí que, compreendendo essa continuada invisibilidade e até inexistência construída para questões como essa, não fica tão difícil entender porque, ao se deparar com uma tosquice dessas  escrota como essa do cara do relato  – e sabemos que ela  tá longe de ser um caso isolado - a gente não consiga pensar numa atitude que confronte isso. Pensar em uma estratégia. E o mesmo acontece quando temos que nos confrontar com nossas próprias atitudes escrotas. Porque da mesma forma que não sabemos lidar com a escrotidão no outro, não sabemos lidar  com a nossa própria. E nossos próprios afetos, desejos e um tanto de outras coisas que se constituíram atravessadas pelo patriarcado. Sinceramente, hoje tenho convicção de que até meu jeito de respirar é totalmente atravessado pelo patriarcado. E, nós homens não temos repertório, memória construída, práticas de conduta, consensos nem acordos entre nós de como lidar criticamente com isso. De como desconstruir isso. Não temos praticamente nada.  Será que tô exagerando? Acho que deve ter coisas por aí e eu que não consigo ver né. Mas sei lá, sinceramente, às vezes  sinto que não temos nada mesmo.
E assim vai terminando mais um texto meu sobre esse tema. Com uma pergunta bem formulada no começo e constatando no fim a ausência de recursos mínimos pra respondê-la. Já tá quase virando estilo de escrita. Perguntar, não responder e comentar isso no fim do texto.
Mas, outro dia conheci uns caras que estão, coletivamente,  produzindo algumas respostas. São um grupo de homens argentinos, os Varones Floreciendo. Lá eles fazem vivências regulares onde os homens se reúnem para discutir o patriarcado e pensar e realizar estratégias de enfrentamento. De um dia, de um fim de semana, na sua própria cidade e em outras. São vários grupos em todo país. Já tem encontros anuais que acontecem, fazem publicações e saem em diversos atos e manifestações por lá.
 Ou seja, é possível repensar a própria masculinidade e é possível os homens se ajudarem nisso. Só que tem que querer futucar o monstrão. E é aí que tá. Ninho de marimbondo ninguém quer mexer né. É preciso construir a coragem de desconstruir o patriarcado. Só que o trem é feio e não dá nenhuma vontade de mexer nisso. Revelar pra gente e pro mundo nosso  como opera nosso mais íntimo “amigo secreto” não é muito fácil mesmo.
O carnaval esse ano já foi e por horas as flores devem diminuir. Só que a primavera vai continuar. E, ao que tudo indica, com rajadas e trovões daqui pra diante. Diante do que nos espera, nós homens  devíamos plantar pelo menos umas florzinha pra ver como é. Aproveitar que a terra tá fértil e vai chover forte encima da nossa cabeça. No meio dessa primavera toda, tentar participar plantando pelo menos  umas florzinha. Talvez faça alguma diferença.
Pelo menos umas florzinha.



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