segunda-feira, 30 de maio de 2016

                                                               
                                                               A faixa

Há na sociedade patriarcal uma perversidade primeira na nossa sociabilidade de “meninos” com as “meninas”. Somos ensinados, logo no comecinho , desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao odiá-las, desrespeitá-las e diminuí-lasE saímos repetindo isso depois ao longo da vida, sem nem nos darmos conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito de alguma delas.

Já tem um tempo que tô querendo escrever aqui sobre uma dessas coisas que estão na base de formação do ”ser homem” e até agora não consegui. Estou há meses sentindo e reparando nisso e pensando muitas vezes “óia o baguio aqui de novo, precisava escrever disso pra tentar entender melhor”. Acho que não consegui até agora porque é algo que dá vergonha de admitir. E porque dói o coração quando a gente olha sem desviar tanto. Mas esses dias, depois da história do estupro coletivo de uma adolescente no Rio resolvi sentar  e escrever. Queria falar um pouco da misoginia, do ódio que os homens aprendem a sentir das mulheres.
Quando eu era mais menino eu gostava muito de ler Calvin, um quadrinho estadunidense de um moleque e seu tigre de pelúcia, o Haroldo. Sempre gostei muito, devorava os livrinho como se diz. E desde que comecei a querer entender esse lance da misoginia em mim que lembro toda hora de uma tirinha do Calviin. É uma onde ele falando com o Haroldo sobre a Susie, sua colega na escola e do bairro. Nessa tira, Calvin passa  vários quadrinhos dizendo para Haroldo o quanto ele odeia Susie “Ela é chata, eu odeio ela, quero que ela suma, como ela é insuportável, ela é o terror dos terrores e por aí. Daí, na última o Haroldo brinca com ele repetindo: Calvin está apaixonado!, Calvin ama Susie!, vem cá Susie me dar um beijinho! O Calvin lógico, vocês já imaginam, o  desenhista fez uma nuvem saindo trovão e raios da cabeça dele de tanta raiva que ele fica. E fica mais do que evidente que aquela conversa odiosa dele é uma “demonstração “do quanto ele gosta da Susie.
Há na sociedade patriarcal uma perversidade primeira na nossa sociabilidade de “meninos” com as “meninas”. Somos ensinados, logo no comecinho , desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao odiá-las, desrespeitá-las e diminuí-las. É como se o impulso inicial da relação entre menino e meninas, o passo originário fosse esse: negá-las e, imediatamente depois, diminuí-las. E saímos repetindo isso depois ao longo da vida, sem nem nos darmos conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito de alguma delas.
O que eu acho  que me fez tanto lembrar desse quadrinho  foi a sua capacidade de mostrar de forma tão simples e direta um processo tão fundante da nossa experiência social de “ser homem”: odiar e diminuir as mulheres como ponto de partida pras nossas relações com elas. A tal ponto que mesmo as relações de afeto mais solidárias e amorosas não raro se traduzem em  ofensa, raiva e constante diminuição. A gente xinga e machuca pra elogiar, olha a loucura. Lembro de um outro quadrinho, onde o Calvin pendura uma faixa em letras garrafais em uma árvore em frente à casa da Susie: Eu odeio as meninas gosmentas.  Eis aí uma criança menino tentando dizer pra uma criança menina que gosta muito dela: uma triunfante e garrafal ofensa. No patriarcado a experiência da misoginia é muito fundamental e estruturante. É aprendida desde muito cedo e de maneira muito intensa. E não é por outro motivo que ela está tão presente na nossa vida. Seja na forma de violências brutais e estarrecedoras, seja no cotidiano dos pensamentos miúdos e invisíveis e até mesmo nos momentos de maior respeito e compartilhamento com quem queremos perto de nós. Diminuímos pra dizer que gostamos. Vê se pode.
E tem uma expressão dessa história que eu tenho especialmente prestado atenção: Como nós homens falamos mal e diminuímos as mulheres o tempo todo. Já ouço as mina falar disso há muito tempo né, mas lógico que não tinha atentado de verdade pra isso. Demora né, não tem jeito, assim funciona nosso coração de Conan. Essa parada é uma coisa impressionante. Está em todo lugar, em todo ambiente, a todo momento e de inúmeras formas. Está, vou insistir nisso, até naquelas de maior solidariedade e confiança. Aquela que temos com quem gostamos.  Faz parte do discurso masculino nas mais diferente expressões se referir à mulher sempre numa posição de que elas são um problema. Desde o discurso mais obviamente misógino e abjeto - “ela não merecia nem ser estuprada” – passando pelo básico “sabe como é mulher né” e indo  até o mais sincero dos igualitários -  “apoio total a luta das mina, mas elas são foda né, são brava,  não deixam a gente falar nada, estão contra os homens”. Sempre tem um senão pra dizer das mina. A mulher sempre entra atrapalhando a balada, seja ela qual for, da viagem dos sonhos ao cafezinho no trabalho. Mesmo quando é pra elogiar e dizer que ama, que não vive sem elas, que admira e tal parece que a lógica do odeio as meninas gosmentas se faz presente.  Sempre tem um senão, algo que delimita uma diferença indicando que as mulheres nos atrapalham, nos complicam a vida. E - muitos acharão  exagero - acho que se pararmos pra olhar  com cuidado vamos encontrar ali, na raiz desse senão uma vozinha dizendo “eu odeio você”, ”eu quero te matar” e outras coisas desse nível de violência e negação do outro. E isso acontece porque é essa a experiência primeira, a parada que aciona a sociabilidade entre gêneros na sociedade patriarcal. Nós homens devemos sempre odiar e diminuir as mulheres. È assim que o patriarcado  se mantem.
Parece exagero né. Mas olha, sabe como percebi isso? Reparando em mim mesmo. Nos meus incômodos incessantes e numa repetitiva “mania” de diminuir. Sou muito provocativo e tô sempre brincando, tirando onda do outro. Muitas vezes além da medida e de forma desrespeitosa. Mais do que a média provavelmente, se é que isso é coisa que dê pra se tirar alguma média. Então parei pra ver o que tava atrás de minhas constantes provocações com as mina. E cheguei num sentimento de raiva e ódio. Uma negação pura e simples. Sem nenhuma explicação, sem nenhum motivo. Mas tava lá. Um grito bem grande e nítido:  Eu te odeio. Tipo a faixa do Calvin memo. E tava também numa excessiva falta de paciência, no meu nervosismo com tal mania, na escolha da comida, do lugar, do filme, da roupa, do jeito, do pensamento, da forma de ser feminista, de ter opinião, de ter amigos, de sentar de ficar de pé de ter corpo, de ter cheiro de gostar e de desgostar e isso e aquilo e infinitos aquilos que não acabam nunca.
Não estou querendo dizer com isso que a admiração, o companheirismo, as brincadeiras, as provocações, a vida vivida de boa, as besteiras que só são besteiras o silêncio bom e o amor e seus passarinhos todos são uma ilusão ou algo falso.  Não é isso não. O que tô dizendo é que parece que há uma cisma (e cisma significa também separação) que anda sempre com a gente, na cacunda dos nossos afetos e dos nossos passos toda vez que há uma relação com o feminino. Tá junto nas raivas legítimas,  tá junto com a gente sendo escroto e também tá junto quando a gente está aberto, tranquilo e amoroso. Porque é algo muito fundante mesmo, e é também um aprendizado que o mundo patriarcal não para de reforçar. Ta no meio do nosso tutano. Começa no Calvin e não termina mais. Está com a gente nas mais distintas horas feito um grilinho falante dando a linha o tempo todo.
Uma figura importante na minha vida, uma mulher da horíssima, que eu re-encontrei esses dias me disse que eu tava diferente. Tinha um tempo já que a gente não se via. Contei pra ela essas coisas que eu andei matutano nos últimos tempos, essa vontade de tentar entender melhor minha própria masculinidade, a experiência com os Krenak e tudo isso . Ela me falou que me sentiu diferente mesmo. Me disse que eu continuava cheio das machice tosca, mas que eu tava diferente. Mais cuidadoso ela falou. Mais atencioso. Fiquei pensando que talvez tenha a ver com isso.  Apesar do mesmo machistóide de sempre, to mais desconfiado das minhas próprias macharia e isso tá me fazendo mais cuidadoso. Elas já não me passam  assim tão ao natural. E só isso já tá me deixando menos tosco um pouquinho. Identificar esse ódio e aprendido a lidar com ele. Segurar esse ímpeto de sempre detonar a outra pessoa.
Porque é um horror odiar quem você gosta, ama, respeita e quer perto. Num dá né, pelo amor da deusa. E o mesmo com quem você mal conhece. É mulher? Ah, então vou ofender e diminuir. Pára né, pára.

Olha, eu como sei que eu não vou parar de faze tão cedo,  resolvi escrever uma faixa e pus bem na frente do meu ódio. Ele continua lá me atazanando sem  parar,  mas agora tá o tempo todo lendo: Eu acho as meninas muito da hora! Gosmento é seu nariz! Seu babaca!!! Em letras garrafais e bem escritas – até umas luzinha piscando  eu pus -  porque vocês sabem né, se tem uma coisa que o ódio não gosta é ler. Ele morre de medo disso. Babaca.