A
faixa
Há na sociedade patriarcal uma perversidade primeira na nossa
sociabilidade de “meninos” com as “meninas”. Somos ensinados, logo no comecinho
, desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao odiá-las, desrespeitá-las e
diminuí-lasE saímos repetindo isso depois ao longo da vida, sem nem nos darmos
conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito de alguma delas.
Já tem um tempo que tô querendo
escrever aqui sobre uma dessas coisas que estão na base de formação do ”ser
homem” e até agora não consegui. Estou há meses sentindo e reparando nisso e
pensando muitas vezes “óia o baguio aqui de novo, precisava escrever disso pra
tentar entender melhor”. Acho que não consegui até agora porque é algo que dá
vergonha de admitir. E porque dói o coração quando a gente olha sem desviar
tanto. Mas esses dias, depois da história do estupro coletivo de uma
adolescente no Rio resolvi sentar e
escrever. Queria falar um pouco da misoginia, do ódio que os homens aprendem a
sentir das mulheres.
Quando eu era mais menino eu gostava
muito de ler Calvin, um quadrinho estadunidense de um moleque e seu tigre de
pelúcia, o Haroldo. Sempre gostei muito, devorava os livrinho como se diz. E
desde que comecei a querer entender esse lance da misoginia em mim que lembro
toda hora de uma tirinha do Calviin. É uma onde ele falando com o Haroldo sobre
a Susie, sua colega na escola e do bairro. Nessa tira, Calvin passa vários quadrinhos dizendo para Haroldo o
quanto ele odeia Susie “Ela é chata, eu odeio ela, quero que ela suma, como ela
é insuportável, ela é o terror dos terrores e por aí. Daí, na última o Haroldo
brinca com ele repetindo: Calvin está apaixonado!, Calvin ama Susie!, vem cá
Susie me dar um beijinho! O Calvin lógico, vocês já imaginam, o desenhista fez uma nuvem saindo trovão e
raios da cabeça dele de tanta raiva que ele fica. E fica mais do que evidente
que aquela conversa odiosa dele é uma “demonstração “do quanto ele gosta da
Susie.
Há na sociedade patriarcal uma
perversidade primeira na nossa sociabilidade de “meninos” com as “meninas”.
Somos ensinados, logo no comecinho , desde meninote, a odiar as mulheres. E, ao
odiá-las, desrespeitá-las e diminuí-las. É como se o impulso inicial da relação
entre menino e meninas, o passo originário fosse esse: negá-las e,
imediatamente depois, diminuí-las. E saímos repetindo isso depois ao longo da
vida, sem nem nos darmos conta disso direito. Até mesmo quando gostamos muito
de alguma delas.
O que eu acho que me fez tanto lembrar desse quadrinho foi a sua capacidade de mostrar de forma tão
simples e direta um processo tão fundante da nossa experiência social de “ser
homem”: odiar e diminuir as mulheres como ponto de partida pras nossas relações
com elas. A tal ponto que mesmo as relações de afeto mais solidárias e amorosas
não raro se traduzem em ofensa, raiva e
constante diminuição. A gente xinga e machuca pra elogiar, olha a loucura. Lembro
de um outro quadrinho, onde o Calvin pendura uma faixa em letras garrafais em
uma árvore em frente à casa da Susie: Eu
odeio as meninas gosmentas. Eis aí
uma criança menino tentando dizer pra uma criança menina que gosta muito dela:
uma triunfante e garrafal ofensa. No patriarcado a experiência da misoginia é
muito fundamental e estruturante. É aprendida desde muito cedo e de maneira
muito intensa. E não é por outro motivo que ela está tão presente na nossa
vida. Seja na forma de violências brutais e estarrecedoras, seja no cotidiano
dos pensamentos miúdos e invisíveis e até mesmo nos momentos de maior respeito
e compartilhamento com quem queremos perto de nós. Diminuímos pra dizer que
gostamos. Vê se pode.
E tem uma expressão dessa história
que eu tenho especialmente prestado atenção: Como nós homens falamos mal e diminuímos
as mulheres o tempo todo. Já ouço as mina falar disso há muito tempo né, mas
lógico que não tinha atentado de verdade pra isso. Demora né, não tem jeito,
assim funciona nosso coração de Conan. Essa parada é uma coisa impressionante.
Está em todo lugar, em todo ambiente, a todo momento e de inúmeras formas. Está,
vou insistir nisso, até naquelas de maior solidariedade e confiança. Aquela que
temos com quem gostamos. Faz parte do
discurso masculino nas mais diferente expressões se referir à mulher sempre
numa posição de que elas são um problema. Desde o discurso mais obviamente
misógino e abjeto - “ela não merecia nem ser estuprada” – passando pelo básico “sabe
como é mulher né” e indo até o mais
sincero dos igualitários - “apoio total
a luta das mina, mas elas são foda né, são brava, não deixam a gente falar nada, estão contra os
homens”. Sempre tem um senão pra dizer das mina. A mulher sempre entra
atrapalhando a balada, seja ela qual for, da viagem dos sonhos ao cafezinho no
trabalho. Mesmo quando é pra elogiar e dizer que ama, que não vive sem elas,
que admira e tal parece que a lógica do odeio
as meninas gosmentas se faz presente.
Sempre tem um senão, algo que delimita uma diferença indicando que as
mulheres nos atrapalham, nos complicam a vida. E - muitos acharão exagero - acho que se pararmos pra olhar com cuidado vamos encontrar ali, na raiz
desse senão uma vozinha dizendo “eu odeio você”, ”eu quero te matar” e outras
coisas desse nível de violência e negação do outro. E isso acontece porque é
essa a experiência primeira, a parada que aciona a sociabilidade entre gêneros
na sociedade patriarcal. Nós homens devemos sempre odiar e diminuir as mulheres.
È assim que o patriarcado se mantem.
Parece exagero né. Mas olha, sabe
como percebi isso? Reparando em mim mesmo. Nos meus incômodos incessantes e
numa repetitiva “mania” de diminuir. Sou muito provocativo e tô sempre
brincando, tirando onda do outro. Muitas vezes além da medida e de forma
desrespeitosa. Mais do que a média provavelmente, se é que isso é coisa que dê
pra se tirar alguma média. Então parei pra ver o que tava atrás de minhas
constantes provocações com as mina. E cheguei num sentimento de raiva e ódio.
Uma negação pura e simples. Sem nenhuma explicação, sem nenhum motivo. Mas tava
lá. Um grito bem grande e nítido: Eu te odeio. Tipo a faixa do Calvin
memo. E tava também numa excessiva falta de paciência, no meu nervosismo com
tal mania, na escolha da comida, do lugar, do filme, da roupa, do jeito, do pensamento,
da forma de ser feminista, de ter opinião, de ter amigos, de sentar de ficar de
pé de ter corpo, de ter cheiro de gostar e de desgostar e isso e aquilo e
infinitos aquilos que não acabam nunca.
Não estou querendo dizer com isso que
a admiração, o companheirismo, as brincadeiras, as provocações, a vida vivida
de boa, as besteiras que só são besteiras o silêncio bom e o amor e seus
passarinhos todos são uma ilusão ou algo falso. Não é isso não. O que tô dizendo é que parece
que há uma cisma (e cisma significa também separação) que anda sempre com a
gente, na cacunda dos nossos afetos e dos nossos passos toda vez que há uma
relação com o feminino. Tá junto nas raivas legítimas, tá junto com a gente sendo escroto e também tá
junto quando a gente está aberto, tranquilo e amoroso. Porque é algo muito
fundante mesmo, e é também um aprendizado que o mundo patriarcal não para de
reforçar. Ta no meio do nosso tutano. Começa no Calvin e não termina mais. Está
com a gente nas mais distintas horas feito um grilinho falante dando a linha o
tempo todo.
Uma figura importante na minha vida,
uma mulher da horíssima, que eu re-encontrei esses dias me disse que eu tava
diferente. Tinha um tempo já que a gente não se via. Contei pra ela essas
coisas que eu andei matutano nos últimos tempos, essa vontade de tentar
entender melhor minha própria masculinidade, a experiência com os Krenak e tudo
isso . Ela me falou que me sentiu diferente mesmo. Me disse que eu continuava
cheio das machice tosca, mas que eu tava diferente. Mais cuidadoso ela falou.
Mais atencioso. Fiquei pensando que talvez tenha a ver com isso. Apesar do mesmo machistóide de sempre, to
mais desconfiado das minhas próprias macharia e isso tá me fazendo mais
cuidadoso. Elas já não me passam assim
tão ao natural. E só isso já tá me deixando menos tosco um pouquinho.
Identificar esse ódio e aprendido a lidar com ele. Segurar esse ímpeto de
sempre detonar a outra pessoa.
Porque é um horror odiar quem você
gosta, ama, respeita e quer perto. Num dá né, pelo amor da deusa. E o mesmo com
quem você mal conhece. É mulher? Ah, então vou ofender e diminuir. Pára né, pára.
Olha, eu como sei que eu não vou
parar de faze tão cedo, resolvi escrever
uma faixa e pus bem na frente do meu ódio. Ele continua lá me atazanando
sem parar, mas agora tá o tempo todo lendo: Eu acho as
meninas muito da hora! Gosmento é seu nariz! Seu babaca!!! Em letras garrafais
e bem escritas – até umas luzinha piscando eu pus - porque vocês sabem né, se tem uma coisa que o
ódio não gosta é ler. Ele morre de medo disso. Babaca.