Latidos
Desde
molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar
a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia
perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade
mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio
das pernas. Toma a gente inteiro.
Ando com muito medo do ódio. Tenho
pensado que estamos vivendo um tempo muito perigoso. Que estamos em um período
onde muita coisa, muitas práticas, sentimentos e atitudes que gravitam em torno
da palavra ódio vão encontrar terreno fértil para se fortalecer e se espraiar
cada dia mais. E deve ser por isso,
justamente por isso que ando pensando muito mais no amor. Num mundo asfixiante
de tanto ódio, fica essa vontade de respiro fundo que o amor dá. E veio também
a vontade de entender a relação– ou a não-relação – disso que é o amor com essa nossa estupidez fundamental, esse mar sem fim
de desamor que é o machismo.
Nesses tempos de ódio por tudo quanto é
lado e jeito, acho que é preciso meditar um pouco mais sobre o amor. Sobre o Amor,
melhor assim. Porque tô falando de Amor como jeito de botar atenção no mundo, Amor
como jeito de mexer as mãos, Amor nas coisas miudinhas e depois nas outras.
Amor na forma de piscar os olhos. Amor
como uma forma de inteligência superlativa e abundante. Como fertilidade, como
erótica, Amor como um torvelinho d´agua burilando – essa última quem me soprou foi a índia shipibo que me anda arrodeada
por esses tempos.
Cala
essa boca!
Mal acabo de escrever esse último parágrafo
e já sinto um destacamento de dobermans
e gárgulas babando ódio branco virem pra cima dessas primeiras inquietação
sobre o amor. Vem direto e sem dó.
Engancham as presas e os dentes até estraçalhar tudo.
Cala boca seu idiota! Para com essa frescura
de falar de amor! Só faltava essa agora! Isso é coisa de viado!
Mas eu sou de esquerda e super estudado.
“Sei me defender” penso comigo. “Puta discurso escroto, essas vozes
conservadoras não vão funcionar. Sou um homem esclarecido, esse discurso raso e
banal não me atinge. Repudio todos vocês!” . E eles pouco ligam, continuam incansáveis até
só sobrar um ou outro monossílabo sem sentido. É assim. Triste assim. O que
começa num quase querer ser amor vira xingamento estraçalhado no fundo da
gente. E vamos, aos poucos, desde meninos, desaprendendo a sentir. Aprendendo,
pelo desamor, a ser monossilábicos.
A sensação é mais ou menos assim: é como
se eu estivesse começando um mosaico; todas suas pedrinhas coloridas meio ali
por perto, algumas formas já pela cabeça “Acho que vou fazer assim”, vontade de
juntar tal e tal cor, uma lembrança boa que vem
de longe e pousa e dá até uma
expiração mais funda. Cala essa boca seu
idiota!! Chega uma botina chutando e estraçalhando tudo, marcando o chute (o
tiro, o estupro, a violência letal) como memória a ser conservada. Qualquer
semelhança com a vida real vivida por jovens pretos periféricos, índios sendo
massacrados em sua terras ancestrais, povos de terreiro sendo apedrejados e
mulheres e gays sofrendo violência
extrema não é mera coincidência. Eis o
patriarcado em plena operação. E é assim com todxs. E com os homens e entre os homens
também. Opera criando códigos, lógicas e práticas que são passadas desde muito
cedo aos homens que passam a reproduzir isso com os outros homens. Desde
molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar
a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia
perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade
mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio
das pernas. Toma a gente inteiro.
Tenho uma criança muito querida que
convivo bastante. Vizinha aqui de casa, mora aí na frente. Encontro com ela
sempre, somos muito próximos e nos adoramos. Já tem um tempo, que o jeito dela
me saudar é me dando um monte de porrada. Tento falar e conversar com ela.
Tento abraçá-la e brincar sem tanta truculência. Para que tenha outra referência
pelo menos. E saiba que não precisa ser o tempo todo assim... Aprendeu na escolinha, se não se defendesse e
aprendesse a bater também, ia ficar apanhando sem parar. Foi o pai que me explicou .
É assim nas mega operações militares que
destroem nações inteiras.
É assim no universo de idéias de um
homem machista escrevendo um texto.
Cala a boca!
Os gárgulas e os dobermans chegam novamente. Latem e
esgrinham no fundo de mim. E me dão medo de ser piegas porque querer falar de
amor. Medo de ser moralista. Medo de ser superficial e ridículo. Medo de ser
viado. A essa altura, já não consigo mais escrever nada. O campo fértil foi
devidamente estraçalhado e agora só nasce monossílabo. Monocultura do
monossílabo, alimentado pela baba branca do ódio.
Estou chegando perto do final do texto. Antes de
começar, tinha pensado que ia falar
de um livro do Ítalo Calvino, talvez de
um filme do Kubrick e do mundo simbólico que envolve a noção de Pachamama. Até escrevi pra uma amiga,
falamos de literatura e do mar, de um sonho que eu tive. Antes de começar esse
texto, ouvi uma música que eu gosto, que lembra uma floresta... Ouvi os pássaros que moram aqui perto de mim,
tão perto que às vezes seu canto parece sair do meu coração. E entre algum desses momentos fechei os olhos
por mais tempo e pensei que era bom poder falar de amor.
O Chico Buarque tem uma canção que ele fala de um
vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar. Acho que pra nós, homens
machistas, o amor está assim, escondido no fundo de algum armário. E é preciso passar por todo um bando de
construções odiosas pra chegar até ele.
Melhor dizendo, é necessário reconhecer e desconstruir ao mesmo tempo. E
é preciso entender que isso passa necessariamente por colocar em cheque uma
série de privilégios. Mas isso já é outra história...
A música do Chico fala de dançar por toda a cidade.
Seria tão bom...
Lá vem eles de novo, já ouço os latidos.
ps: Nada contra os dobermans viu gente. È que quando
eu era moleque, eles eram o maio símbolo de vígilia e medo. Só isso. Acho que
eles devem ser alvos dessa treta toda também. Como dizem por aí: “el
patriarcado nos jode a todxs”.
Muiyo bom texto!! Precisamos resgatar o amor pelos outros,pela vida em todas as suas liberdades, q é o amor q teremos limpamente por nós mesmos em nossas vontades e rspeitando as vontades de outrem!
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