quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Latidos

Desde molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio das pernas. Toma a gente inteiro. 

Ando com muito medo do ódio. Tenho pensado que estamos vivendo um tempo muito perigoso. Que estamos em um período onde muita coisa, muitas práticas, sentimentos e atitudes que gravitam em torno da palavra ódio vão encontrar terreno fértil para se fortalecer e se espraiar cada dia mais.   E deve ser por isso, justamente por isso que ando pensando muito mais no amor. Num mundo asfixiante de tanto ódio, fica essa vontade de respiro fundo que o amor dá. E veio também a vontade de entender a relação– ou a não-relação – disso que  é o amor com essa  nossa estupidez fundamental, esse mar sem fim de  desamor que é o machismo.
Nesses tempos de ódio por tudo quanto é lado e jeito, acho que é preciso meditar um pouco mais sobre o amor. Sobre o Amor, melhor assim. Porque tô falando de Amor como jeito de botar atenção no mundo, Amor como jeito de mexer as mãos, Amor nas coisas miudinhas e depois nas outras. Amor na forma de piscar os olhos.  Amor como uma forma de inteligência superlativa e abundante. Como fertilidade, como erótica, Amor como um torvelinho d´agua burilando – essa última quem  me soprou foi a índia shipibo que me anda arrodeada por esses tempos.
Cala essa boca!
Mal acabo de escrever esse último parágrafo  e já sinto um destacamento de dobermans e gárgulas babando ódio branco virem pra cima dessas primeiras inquietação sobre o amor.  Vem direto e sem dó. Engancham as presas e os dentes até estraçalhar tudo.
 Cala boca seu idiota! Para com essa frescura de falar de amor! Só faltava essa agora! Isso é coisa de viado!
Mas eu sou de esquerda e super estudado. “Sei me defender” penso comigo. “Puta discurso escroto, essas vozes conservadoras não vão funcionar. Sou um homem esclarecido, esse discurso raso e banal não me atinge. Repudio todos vocês!” . E eles pouco ligam, continuam incansáveis até só sobrar um ou outro monossílabo sem sentido. É assim. Triste assim. O que começa num quase querer ser amor vira xingamento estraçalhado no fundo da gente. E vamos, aos poucos, desde meninos, desaprendendo a sentir. Aprendendo, pelo desamor, a ser monossilábicos.
A sensação é mais ou menos assim: é como se eu estivesse começando um mosaico; todas suas pedrinhas coloridas meio ali por perto, algumas formas já pela cabeça “Acho que vou fazer assim”, vontade de juntar tal e tal cor, uma lembrança boa que vem  de longe  e pousa e dá até uma expiração mais funda. Cala essa boca seu idiota!! Chega uma botina chutando e estraçalhando tudo, marcando o chute (o tiro, o estupro, a violência letal) como memória a ser conservada. Qualquer semelhança com a vida real vivida por jovens pretos periféricos, índios sendo massacrados em sua terras ancestrais, povos de terreiro sendo apedrejados e mulheres e gays sofrendo violência extrema não é mera coincidência. Eis o  patriarcado em plena operação. E é assim  com todxs. E com os homens e entre os homens também. Opera criando códigos, lógicas e práticas que são passadas desde muito cedo aos homens que passam a reproduzir isso com os outros homens. Desde molequinho, estamos nos controlando, nos reprimindo, mandando um ao outro calar a boca, se xingando, se violentando. Criamos, desde cedo, uma hierarquia perversa de quem é mais ou menos “homem” e seguimos obedecendo ela até a idade mais madura. Essa hierarquia entra na nossa mente, no nosso coração, no meio das pernas. Toma a gente inteiro. 
Tenho uma criança muito querida que convivo bastante. Vizinha aqui de casa, mora aí na frente. Encontro com ela sempre, somos muito próximos e nos adoramos. Já tem um tempo, que o jeito dela me saudar é me dando um monte de porrada. Tento falar e conversar com ela. Tento abraçá-la e brincar sem tanta truculência. Para que tenha outra referência pelo menos. E saiba que não precisa ser o tempo todo assim...  Aprendeu na escolinha, se não se defendesse e aprendesse a bater também, ia ficar apanhando sem parar.  Foi o pai que  me explicou .
É assim nas mega operações militares que destroem nações inteiras.
É assim no universo de idéias de um homem machista escrevendo um texto. 
Cala a boca!
Os gárgulas  e os dobermans chegam novamente. Latem e esgrinham no fundo de mim. E me dão medo de ser piegas porque querer falar de amor. Medo de ser moralista. Medo de ser superficial e ridículo. Medo de ser viado. A essa altura, já não consigo mais escrever nada. O campo fértil foi devidamente estraçalhado e agora só nasce monossílabo. Monocultura do monossílabo, alimentado pela baba branca do ódio.
Estou chegando perto do final do texto. Antes de começar,  tinha pensado que ia falar de  um livro do Ítalo Calvino, talvez de um filme do Kubrick e do mundo simbólico que envolve a noção  de Pachamama. Até escrevi pra uma amiga, falamos de literatura e do mar, de um sonho que eu tive. Antes de começar esse texto, ouvi uma música que eu gosto, que lembra uma floresta...  Ouvi os pássaros que moram aqui perto de mim, tão perto que às vezes seu canto parece sair do meu coração.  E entre algum desses momentos fechei os olhos por mais tempo e pensei que era bom poder falar de amor.
O Chico Buarque tem uma canção que ele fala de um vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar. Acho que pra nós, homens machistas, o amor está assim, escondido no fundo de algum armário.  E é preciso passar por todo um bando de construções odiosas pra chegar até ele.  Melhor dizendo, é necessário reconhecer e desconstruir ao mesmo tempo. E é preciso entender que isso passa necessariamente por colocar em cheque uma série de privilégios. Mas isso já é outra história...
A música do Chico fala de dançar por toda a cidade. Seria tão bom... 

Lá vem eles de novo, já ouço os latidos.


ps: Nada contra os dobermans viu gente. È que quando eu era moleque, eles eram o maio símbolo de vígilia e medo. Só isso. Acho que eles devem ser alvos dessa treta toda também. Como dizem por aí: “el patriarcado nos jode a todxs”.

Um comentário:

  1. Muiyo bom texto!! Precisamos resgatar o amor pelos outros,pela vida em todas as suas liberdades, q é o amor q teremos limpamente por nós mesmos em nossas vontades e rspeitando as vontades de outrem!

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