O tempo e o cão
Esses dias estava ouvindo uma monja
budista contar uma estória sobre um cachorro que ela teve. Essa monja gosta
muito de cachorro, sempre tem uns cachorro com ela.
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Daí ela contou que uma vez arrumou um
cachorro muito muito raivoso, que só latia e atacava todo mundo sem parar.
Diante disso ela deixou uma sala da casa só pra ele ficar lá vociferando e
babando até cansar. Só que ele recomeçava assim que tinha o mínimo de energia.
Segundo ela, ele era assim desde pequenininho. Também passeavam com ele, mas
era muito difícil.
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Em um dos meus escritos aí pra trás
falo do doberman interior. Sempre me remeto a essa imagem porque sinto ela
muito forte nesse lance do machismo. O cachorro da porta dos infernos algúem me
falou uma vez. E o cachorro preto de um filme do Kubrick de terror, algo que
remetia a isso de inferno também se não me engano. Lembro também do medo que eu
sentia quando era menino de passar numa rua perto de casa, a “rua dos cachorros”.
E as histórias de crianças que foram pegas por cachorros quando entraram em
algum sítio ou chácara. Muitas lembranças que remetem a isso né, as imagens não
cessam. Se eu deixar elas ficam vindo na mente e correndo que nem filminho até
sei lá quando.
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Sinto a voz patriarcal como esse
cachorro louco. Por um lado tem ele, um ímpeto de agressividade tresloucada,
esse ódio babento. De outro, a imagem de uma criança assustada, incapaz de
fazer outra coisa além de ficar apavorada. Acho que essa díade é muito presente
no modelo patriarcal de ser homem. Está muito presente em nós. O cachorro
odioso e o menino assustado.
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Então lembro de novo da história da
monja. Diz ela que ia todo dia lá e buscava ficar o mais próximo que podia
desse cachorro. Contou inclusive da energia que ficava na sala, como era algo
que mesmo de olhos fechados qualquer um era capaz de sentir a agitação daquele
espaço, tão tomado de raiva que ele tava. Passou um bom tempo indo lá com seus
discípulos diariamente para observar a agressividade e ir se aproximando aos
poucos. Íamos lá dançar com ele e com a sala, acho que disse em algum momento.
Até que um dia o cachorro ficou quieto. Depois de muito tempo o cachorro ficou
quieto. Não sei se manso, mas quieto. Nesse dia, conta a monja, ela juntou as
mãos e agradeceu, se sentou de frente a uma parede da sala e praticou zazen.
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Daí acabou.
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Essas estória da monja viu. essas
estórias do zen. Pra variar, não sei se entendi alguma coisa, mas sei que me
lembrou muito essa parada do patriarcado.
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Ela não fala o tempo que levou todo
esse negócio ai. Mas tenho pra mim que a coisa demorou uns bons anos viu.
Parece que o tal do cachorro era mesmo muito bravo.
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Obs: não sou praticante nem contrário
a nenhuma religião que fala de inferno. E não tenho nada contra cachorro.
Cresci num mundo cheio dessas imagens católicas, numa cultura assim. E cresci
numa vila cheia de cachorro de tudo que e jeito. São imagens guardadas ai nas
minhas memórias de paulistano brasileiro, só isso.
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