A parte que me cabe
Esses dias estava conversando com um amigo
e comentava com ele como me sentia meio ridículo falando e me incomodando tanto
com meu machismo cotidiano e seus inúmeros
tentáculos na minha vida enquanto que, pelo
mundo afora, acontecimentos como o crime da Vale, o fechamento de escolas e guerras estúpidas
causam malefícios inimagináveis para muita, muita gente. E é engolfado nessa
angústia, atravessado dessa tensão que
tento escrever esse texto.
*
A primeiro
sinal que Rondon Krenak teve de que algo estranho estava acontecendo no rio
Doce foi dado pelo seu filho de quatro anos. Acostumado a brincar na praia do
rio – onde se banha e bebe de sua água diariamente – o menino achou estranho o
monte de camarões mortos na areia. Horas
depois começaram a chegar os peixes. Vieram antes da lama, trazidos pela
correnteza. Vieram na frente, anunciando que algo mais acima estava matando a
vida no rio. Em algumas horas, chegou a lama na Terra Indígena Krenak e matou absolutamente tudo no rio. Já faz
quase uma semana que a lama tóxica da Vale já tinha percorrido todo o rio Doce
e tinha chegado em Linhares,
litoral Capixaba.
Indo almoçar outro
dia na casa da minha mãe, vi o que andaram fazendo com o manacá da Serra que
ela plantou na frente da casa. Alguém passou e se trepou num dos galhos
centrais até quebrar e decepar a árvore florida da minha mãe. O cidadão
arrancou quase a metade da copa da
árvore por estúpida diversão e ignorância.
O vizinho comentou com ela: “E o Alckimin mandando fechar escola”.
Na França, após
os atentados, o presidente afirmou que o país estava em guerra e uma da
primeiras medidas era expulsar todos líderes religiosos árabes considerados
perigosos do país. E, ao que tudo
indica, isso é só o começo. Aqui no Brasil, no mundo árabe e na Europa a extrema direita e seus dois pés
ficandos em ações genocidas avança e passos largos.
Estou aqui
agora, de frente para o computador ,
desesperançado e triste com esse monte de coisa tenebrosa que anda rolando. Os dias não estão fáceis. Mas o que fica me
remexendo as idéias e os afetos para
além da perplexidade e de um horroroso sentimento de impotência é a
relação entre esses eventos, o fato deles serem expressões distintas de um mesmo projeto
civilizatório. É como se fossem frutos de uma mesma árvore. Árvore essa que é formada
por muitas raízes: Racismo, dominação
econômica , patriarcado e violências outras. Estão todas imbricadas uma na
outra, se alimentam, se fortalecem e se contradizem muitas vezes. Nesse espaço
aqui é o machismo (patriarcado) nos homens e entre homens que anima seu
machista autor .
*
Esses dias
estava conversando com um amigo e comentava com ele como me sentia meio
ridículo falando e me incomodando tanto com meu machismo cotidiano e seus inúmeros tentáculos na minha vida
enquanto que, pelo mundo afora,
acontecimentos como o crime da Vale, o
fechamento de escolas e guerras estúpidas causam malefícios inimagináveis para
muita, muita gente.
E é engolfado
nessa angústia, atravessado dessa tensão que tento escrever esse texto. E percebo que é
como se nas últimas semanas, o espaço reservado em mim pra essas reflexões mais
intimistas, tivesse sido tomado de assalto
pelo prelúdio de hecatombe que anda pipocando
em tudo que é canto do mundo. Não que eu viva tomado dessas reflexões em nível
pessoal o tempo todo da vida, pelo contrário. Cruz-credo, não aguentaria. Não
me aguentaria melhor dizendo. Sou chato demais para ficar tão preocupado comigo
mesmo e meus arredores. Há muito mais coisa por aí que merece minha atenção. Mas um
momento dessa reflexão mais centrada em mim mesmo tem também seu lugar na minha
vida.
Mas daí,
depois de ficar um tempinho olhando a lua
até a respiração ficar mais funda eis que me surge o seguinte: o universo
intimista - mais “pequeno”- e o mundo “público”
-mais amplo- não são mundos opostos. São dimensões de uma mesma realidade, faces
diferentes de uma mesmo processo.
O machismo que
eu produzo e que produz tristeza e violência
na minha vida e de quem convive comigo anda de mãos dadas com a cegueira por
lucro da Vale do Rio Doce. E é o mesmo
que orienta as decisões do governo de São Paulo e da sua pasta de educação,
comandada por um senhor que me remete a
gestapo nazista só de olhar sua foto . E também se irmana com a ideologia
da extrema direita que envolve os atentados e a política xenofóbica lá na
Europa, Oriente Médio e África.
Esse machismo
que me deixa tão inoperante diante de mim mesmo está presente no menino que
resolveu decepar o manacá florido da
minha mãe. O doberman interior que me aflige e não me deixa nem sonhar com um
mundo menos imbecilizado é o mesmo que se presentifica nos homens armados que
vão tirar os Krenak do meio dos trilhos para o minério-mercadoria continuar circulando
sem parar. É o mesminho que se apossou
até da miudeza tão cotidiana que é ir andando para a escola do seu bairro.
Tomou conta de um rio inteiro, de um vale inteiro. E que já começa a tomar a
imensidão do mar.
Coisa difícil
é se perceber participando disso tudo, perceber
que minhas ações, meu jeito de ser muitas vezes legitima essa “mandala
do mal” (ouvi essa outro dia, gostei). É muito mais fácil colocá-los no campo
do “totalmente outro” e dizer “eu não tenho nada a ver com isso”. Só que não.
Ao observar como ajo, como penso,
como vivo meu corpo, meus afetos, minhas
relações, percebo que faço um tanto de coisa que ajuda a sustentar esse teia
maldita em que coisas miúdas e grandes se combinam, se espelham fortalecem o patriarcado. Percebo e começo a
entender como é algo enraizado e presente em muitos lugares que eu reconheço
sendo parte de mim.
Eu consigo
afirmar com convicção que eu não sou esses caras que tomam as decisões na Vale,
na Educação de Sâo Paulo na cúpulas do mundo extremista horroroso. Não sou
esses homens. Não sou! Mas é preciso reconhecer também que reproduzo práticas e valores do
universo patriarcal machista que
legitimam homens como esses. E não é pouco. E que nesse sentido, eu não sou eles, mas também não sou esse “totalmente outro” que
não tem nada a ver com isso. Não sou totalmente outro e acho muito importante reconhecer
isso. Gostaria muito de ser, mas não sou.
Gostaria muito
de ser mas não sou.
Será que
gostaria mesmo?
Bruno, essa dialética entre a particularidade que somos nesse mundão e as determinações que nos caracterizam como gênero é muito dolorosa quando se para pra pensar, né?
ResponderExcluirEsses dias eu estava refletindo sobre como é difícil colocar lado a lado o cuidado com a própria saúde e ação política crítica. Parece que ao lutar a gente se conscientiza e, ao se conscientizar das injustiças do mundo, a gente sofre.. Eu lembro quando comecei no movimento estudantil e pensei: "nossa, como é foda saber que as coisas funcionam assim, que a gente se forma e vive para ser explorado e enriquecer os outros, que tudo está perdido e o muito que fazemos pra lutar contra essa estrutura ainda é pouco... Não seria melhor viver uma vida politicamente alheia, mas com a consciência 'tranquila', na medida do possível? Por que não se resignar e ponto final? O que faz com que a gente tenha essa certeza inexplicável de que precisamos lutar contra a injustiça?" Enfim, eu fiquei brisando e tentando resolver essa questão existencial. Ler seu texto me fez lembrar dela.
Mas aí eu pensei melhor: a consciência de todos nós, ao se mobilizar, se amplia. E isso nunca acaba. Só quando nos fechamos ao 'outro', e a nossa responsabilidade infinita perante este outro (que também somos nós), é que a consciência se torna intransitiva ou ingênua. Isso requer um tipo de esquecimento que também não é isento de sofrimento: ninguém pode viver sozinho no mundo. Então, o jeito parece que é assumir que temos a tarefa de sempre buscar a consciência e a atitude críticas para caminhar em direção à libertação.
Pensar assim me tranquiliza porque posso me colocar sob autocrítica com relação ao machismo/racismo/homofobia/etc. que são estruturais, mas se reproduzem na vida cotidiana todos nós. Por isso, me coloco numa posição "humilde", como dizem as pessoas mais sábias, quando percebo uma oportunidade de aprender com aqueles e aquelas que são mais oprimidos/as cotidianamente. E quando me percebo diante de atitudes opressoras (minhas ou dos outros/as), coloco-me na posição mais "combativa", de não aceitá-las como naturais.
É um baita exercício difícil de se fazer, ainda mais sozinho e nessa sociedade... Mas é um movimento necessário: tanto politicamente, quanto para ficar em paz comigo mesmo.
Seu texto me despertou essas reflexões. Obrigado por tê-lo escrito.
Sigamos na luta, compañero.
Abs
JF
salve Zé fernando, mas não é fácil essa escolha pela pílula vermelha viu... temdias que realmente queria ter ficado com a pilula azul da matrix... Esses tempos tem me afetado assim, desãnimo. Mas é bom ler palavras como as suas, sei que somo spoucos mas somos alguns e é sempre bom receber um aceno de companheirismo e solidariedade. Seguimos na busca de um dificil equilibrio, forte abraço, Bruno.
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