sábado, 28 de novembro de 2015

A parte que me cabe


Esses dias estava conversando com um amigo e comentava com ele como me sentia meio ridículo falando e me incomodando tanto com meu machismo cotidiano e  seus inúmeros tentáculos na minha vida enquanto que,   pelo mundo afora, acontecimentos como o crime da Vale,  o fechamento de escolas e guerras estúpidas causam malefícios inimagináveis para muita, muita gente. E é engolfado nessa angústia, atravessado dessa tensão  que tento escrever esse texto.
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A primeiro sinal que Rondon Krenak teve de que algo estranho estava acontecendo no rio Doce foi dado pelo seu filho de quatro anos. Acostumado a brincar na praia do rio – onde se banha e bebe de sua água diariamente – o menino achou estranho o monte de camarões mortos na areia.  Horas depois começaram a chegar os peixes. Vieram antes da lama, trazidos pela correnteza. Vieram na frente, anunciando que algo mais acima estava matando a vida no rio. Em algumas horas, chegou a lama na Terra Indígena  Krenak e matou absolutamente tudo no rio. Já faz quase uma semana que a lama tóxica da Vale já tinha percorrido todo o  rio Doce  e  tinha chegado em Linhares, litoral Capixaba.
Indo almoçar outro dia na casa da minha mãe, vi o que andaram fazendo com o manacá da Serra que ela plantou na frente da casa. Alguém passou e se trepou num dos galhos centrais até quebrar e decepar a árvore florida da minha mãe. O cidadão arrancou quase a metade da copa da  árvore por estúpida diversão  e ignorância. O vizinho comentou com ela: “E o Alckimin mandando fechar escola”.
Na França, após os atentados, o presidente afirmou que o país estava em guerra e uma da primeiras medidas era expulsar todos líderes religiosos árabes considerados perigosos do país.  E, ao que tudo indica, isso é só o começo. Aqui no Brasil, no mundo árabe e na  Europa a extrema direita e seus dois pés ficandos em ações genocidas avança e passos largos.
Estou aqui agora, de frente para  o computador , desesperançado e triste com esse monte de coisa tenebrosa que anda rolando.  Os dias não estão fáceis. Mas o que fica me remexendo as idéias e os afetos para  além da perplexidade e de um horroroso sentimento de impotência é a relação entre esses eventos, o fato deles serem  expressões distintas de um mesmo projeto civilizatório. É como se fossem frutos de uma mesma árvore. Árvore essa  que é formada  por muitas raízes:  Racismo, dominação econômica , patriarcado e violências outras. Estão todas imbricadas uma na outra, se alimentam, se fortalecem e se contradizem muitas vezes. Nesse espaço aqui é o machismo (patriarcado) nos homens e entre homens que anima seu machista autor .
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Esses dias estava conversando com um amigo e comentava com ele como me sentia meio ridículo falando e me incomodando tanto com meu machismo cotidiano e  seus inúmeros tentáculos na minha vida enquanto que,   pelo mundo afora, acontecimentos como o crime da Vale,  o fechamento de escolas e guerras estúpidas causam malefícios inimagináveis para muita, muita gente.
E é engolfado nessa angústia, atravessado dessa tensão  que tento escrever esse texto. E percebo que é como se nas últimas semanas, o espaço reservado em mim pra essas reflexões mais intimistas, tivesse  sido tomado de assalto pelo prelúdio de hecatombe que anda  pipocando em tudo que é canto do mundo. Não que eu viva tomado dessas reflexões em nível pessoal o tempo todo da vida, pelo contrário. Cruz-credo, não aguentaria. Não me aguentaria melhor dizendo. Sou chato demais para ficar tão preocupado comigo mesmo e meus arredores. Há muito mais  coisa por aí que merece minha atenção. Mas um momento dessa reflexão mais centrada em mim mesmo tem também seu lugar na minha vida.
Mas daí, depois  de ficar um tempinho olhando a lua até a respiração ficar mais funda eis que me surge o seguinte: o universo intimista - mais “pequeno”-  e o mundo “público” -mais amplo- não são  mundos opostos.  São dimensões de uma mesma realidade, faces diferentes de uma mesmo processo.
O machismo que eu produzo e que  produz tristeza e violência na minha vida e de quem convive comigo anda de mãos dadas com a cegueira por lucro da Vale do Rio Doce.  E é o mesmo que orienta as decisões do governo de São Paulo e da sua pasta de educação, comandada por um senhor que me remete a gestapo nazista só de olhar sua foto . E também se irmana com a ideologia da extrema direita que envolve os atentados e a política xenofóbica lá na Europa, Oriente Médio e África.
Esse machismo que me deixa tão inoperante diante de mim mesmo está presente no menino que resolveu  decepar o manacá florido da minha mãe. O doberman interior que me aflige e não me deixa nem sonhar com um mundo menos imbecilizado é o mesmo que se presentifica nos homens armados que vão tirar os Krenak do meio dos trilhos para o minério-mercadoria continuar circulando sem  parar. É o mesminho que se apossou até da miudeza tão cotidiana que é ir andando para a escola do seu bairro. Tomou conta de um rio inteiro, de um vale inteiro. E que já começa a tomar a imensidão do mar.
Coisa difícil é se perceber participando disso tudo, perceber  que minhas ações, meu jeito de ser muitas vezes legitima essa “mandala do mal” (ouvi essa outro dia, gostei). É muito mais fácil colocá-los no campo do “totalmente outro” e dizer “eu não tenho nada a ver com isso”. Só que não. Ao observar como  ajo, como penso, como  vivo meu corpo, meus afetos, minhas relações, percebo que faço um tanto de coisa que ajuda a sustentar esse teia maldita em que coisas miúdas e grandes  se combinam, se espelham  fortalecem o patriarcado. Percebo e começo a entender como é algo enraizado e presente em muitos lugares que eu reconheço sendo parte de mim.   
Eu consigo afirmar com convicção que eu não sou esses caras que tomam as decisões na Vale, na Educação de Sâo Paulo na cúpulas do mundo extremista horroroso. Não sou esses homens. Não sou! Mas é preciso reconhecer  também que reproduzo práticas e valores do universo patriarcal  machista que legitimam homens como esses. E não é pouco.  E que nesse sentido, eu não sou eles, mas  também não sou esse “totalmente outro” que não tem nada a ver com isso. Não sou totalmente outro e acho muito importante reconhecer isso. Gostaria muito de ser, mas não sou.
Gostaria muito de ser mas não sou.


Será que gostaria mesmo?

2 comentários:

  1. Bruno, essa dialética entre a particularidade que somos nesse mundão e as determinações que nos caracterizam como gênero é muito dolorosa quando se para pra pensar, né?
    Esses dias eu estava refletindo sobre como é difícil colocar lado a lado o cuidado com a própria saúde e ação política crítica. Parece que ao lutar a gente se conscientiza e, ao se conscientizar das injustiças do mundo, a gente sofre.. Eu lembro quando comecei no movimento estudantil e pensei: "nossa, como é foda saber que as coisas funcionam assim, que a gente se forma e vive para ser explorado e enriquecer os outros, que tudo está perdido e o muito que fazemos pra lutar contra essa estrutura ainda é pouco... Não seria melhor viver uma vida politicamente alheia, mas com a consciência 'tranquila', na medida do possível? Por que não se resignar e ponto final? O que faz com que a gente tenha essa certeza inexplicável de que precisamos lutar contra a injustiça?" Enfim, eu fiquei brisando e tentando resolver essa questão existencial. Ler seu texto me fez lembrar dela.
    Mas aí eu pensei melhor: a consciência de todos nós, ao se mobilizar, se amplia. E isso nunca acaba. Só quando nos fechamos ao 'outro', e a nossa responsabilidade infinita perante este outro (que também somos nós), é que a consciência se torna intransitiva ou ingênua. Isso requer um tipo de esquecimento que também não é isento de sofrimento: ninguém pode viver sozinho no mundo. Então, o jeito parece que é assumir que temos a tarefa de sempre buscar a consciência e a atitude críticas para caminhar em direção à libertação.
    Pensar assim me tranquiliza porque posso me colocar sob autocrítica com relação ao machismo/racismo/homofobia/etc. que são estruturais, mas se reproduzem na vida cotidiana todos nós. Por isso, me coloco numa posição "humilde", como dizem as pessoas mais sábias, quando percebo uma oportunidade de aprender com aqueles e aquelas que são mais oprimidos/as cotidianamente. E quando me percebo diante de atitudes opressoras (minhas ou dos outros/as), coloco-me na posição mais "combativa", de não aceitá-las como naturais.
    É um baita exercício difícil de se fazer, ainda mais sozinho e nessa sociedade... Mas é um movimento necessário: tanto politicamente, quanto para ficar em paz comigo mesmo.
    Seu texto me despertou essas reflexões. Obrigado por tê-lo escrito.
    Sigamos na luta, compañero.
    Abs
    JF

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    1. salve Zé fernando, mas não é fácil essa escolha pela pílula vermelha viu... temdias que realmente queria ter ficado com a pilula azul da matrix... Esses tempos tem me afetado assim, desãnimo. Mas é bom ler palavras como as suas, sei que somo spoucos mas somos alguns e é sempre bom receber um aceno de companheirismo e solidariedade. Seguimos na busca de um dificil equilibrio, forte abraço, Bruno.

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